Chove chuva


“Prendam os suspeitos de sempre” - Capitão Renault, em Casablanca


Laerte Temple

07.02.2022

Imagem do filme Casablanca, de Michael Curtiz

No filme Casablanca (1942), Humphrey Boggart é Rick, dono do Rick 's Café. Chamado à casa noturna por causa de uma briga, o chefe de polícia, capitão Renault, ordena: “Prendam os suspeitos de sempre”. Nada acontece, mas ele agiu rápido! A famosa frase se encaixa em muitas situações atuais, inclusive nas enchentes. As autoridades mandam prender os suspeitos de sempre. Só para mostrar serviço!

Chuvas torrenciais ocorrem desde que o mundo existe. Perguntem a Noé. Nos tempos bíblicos, o “culpado de sempre” era a ira divina, por causa da maldade humana. Hoje, mudança climática e desmatamento integram o rol de culpados. A chuva é necessária para a vida, mas todos os anos causa prejuízo material e mortes, até nos países ricos. No Brasil, a chuva intensa começa em novembro e dura até as Águas de Março fecharem o verão (Tom Jobim).

Em Blumenau-SC, em 1984, a chuva forte fez transbordar o rio Itajaí-Açu e destruiu parcialmente a cidade. Em vez de lamentar e se acusarem mutuamente, empresários, prefeitura e a comunidade alemã criaram a Oktoberfest, evento de sucesso que incrementou o turismo e gera divisas.

É fato que a solução de um problema pode originar outros. Exemplo: No fim do século XIX, surgiram os automóveis, mas as ruas e estradas eram precárias. A pavimentação melhorou o fluxo, mas a velocidade aumentou, os acidentes ficaram mais graves e o solo impermeabilizado dificultou o escoamento das águas. A urbanização adensou as cidades e as enchentes se tornaram constantes.

São Paulo, após inúmeros adiamentos, iniciou nos anos 50 a drenagem das várzeas dos rios Pinheiros e Tietê, este com o curso retificado, mas sem o leito aprofundado segundo o projeto e sem os diques de contenção (piscinões). Nas várzeas, espaço que o rio ocupa na cheia, construíram-se as Marginais. Resultado: transbordamento constante e muito prejuízo.

O fenômeno oposto, a seca, traz consequências semelhantes, mas é mais fácil (e visível) distribuir água na seca do que prevenir enchentes. Para causar dano, a seca precisa ser prolongada. Já a chuva, basta cair muita água em pouco tempo que a catástrofe se forma e sobram acusações para todos, mais ainda em ano eleitoral. Os culpados? São Pedro, desmatamento da Amazônia, mudanças climáticas, falta de verba federal, ocupação em áreas de risco (culpa da vítima). Ninguém culpa prefeitos, vereadores e poucos lembram que S. Paulo, em 2021, usou apenas 45% da verba destinada à prevenção de enchentes no Estado.

Quando o poder público não faz política habitacional, o cidadão faz a sua. Ocupa e constrói irregularmente em áreas de risco com tolerância do município pois, para desalojar famílias, é preciso ter onde realoca-las. Depois a autoridade asfalta, leva luz, água e o povo agradece. Aí vem as enchentes e os deslizamentos. Plano Diretor, Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo e Código de Edificações são leis municipais e o cidadão precisa cobrar projetos melhores dos eleitos.

Quem percorre os bairros Jardins e City Lapa (S. Paulo), ou Riviera de São Lourenço (Bertioga), feitos pela iniciativa privada, verá alamedas, calçadas largas e praças, assim como Goiânia e Brasília, cidades planejadas, porém com expansão desordenada. Na periferia e nas cidades dormitório (em torno de grandes centros), a realidade é outra: ocupação de encostas, palafitas, ruas e calçadas estreitas, alta densidade, circulação precária etc.

Não é possível reurbanizar tudo da noite para o dia e as pessoas têm de morar em algum lugar onde possam pagar. E também precisam cobrar planos urbanos eficientes das autoridades. Novas enchentes virão, as TVs vão organizar campanhas de doação, a população vai ajudar, as famílias vão chorar as perdas e as autoridades vão empurrar a culpa para os outros e pedir verbas. A chuva passa, vem carnaval, São João, Copa do Mundo e o povo esquecerá tudo. Até novembro.

Não veremos ações efetivas. Elas demoram, custam caro, não dá para por placa de inauguração e não rendem votos. Quem puder, mude de casa. Quem não puder, ore com fé. Ninguém fará qualquer coisa para prevenir deslizamentos e enchentes, mas nos momentos difíceis aparecerão para dar entrevistas, criticar o antecessor que nada fez, o opositor que dificulta tudo e para anunciar projetos e prometer obras. Na hora de votar, o povo terá esquecido.

Revisão ortográfica: Leilaine Nogueira


Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade exclusiva de seus autores e pode não ser necessariamente a opinião do Cidadão e Repórter.Sua publicação têm o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.