Ciência e Fé

Aborda a questão da evidência científica versus tratamentos alternativos contra Covid e o papel das autoridades, da igreja e da imprensa.

Laerte Temple

02.05.2021
Ilustração disponivel na Internet

Ludovico Van Pelt queria ser padre e foi para o seminário, mas a morte prematura do pai tornou-o arrimo da família e ele teve de trabalhar para cuidar da mãe, beatíssima, e das duas irmãs. Estudou, formou-se em farmácia, mas nunca esqueceu os ensinamentos do seminário, nem o Latim.

Casou-se com Semíramis, médica homeopata, moram num grande sobrado onde também funciona o consultório e a farmácia de manipulação Fé e Ciência. A mãe vive com as duas filhas e lamenta que Ludovico não pode ser ordenado. Seu consolo é que ele, como farmacêutico, também salva almas.

A decretação de quarentena trancou dona Clotilde em casa, com suas constantes crises nervosas que se refletem em desarranjo intestinal. Na última sexta-feira, mandou a filha Ludmila até a farmácia Fé e Ciência para pedir à cunhada e ao irmão alguma droga para seu intestino. Enquanto as mulheres conversavam, Ludovico entregou um frasco à irmã e pediu que desse à mãe duas vezes ao dia, por nove dias, e que permanecesse em repouso por duas semanas. Benzeu o frasco e disse que a fé cura. Semíramis esperou a cunhada ir embora e cobrou-lhe explicações. Ele disse que frasco contém placebo, como as pílulas de papel de Frei Galvão. Ela crê e a fé irá curá-la.

— A fé vai cura-la Ludovico? Me poupe.

Sedare dolorum opus divinum est. Ela acredita que isso irá acalmá-la.

— Lá vem você com a ladainha latina.

— O problema dela é de origem nervosa. Basta acalmá-la para sarar.

No domingo, dona Clotilde saiu à varanda e gritou a plenos pulmões que as pílulas do filho a curaram. Toda a vizinhança ouviu, mas ninguém sabia exatamente do que ela estava curada.

Ludovico e Semíramis acordam na segunda-feira com um vozerio à porta da farmácia e viram a atendente Salete organizar a fila e distribuir senhas.

— O que está acontecendo?

— Todos querem a pílula da Fé. Viram a recuperação de sua mãe.

— Mea culpa. Eu devia ter sido mais cuidadoso.

— Seu Ludovico, diz logo que é placebo, para diarreia, e eles irão embora.

Ludovico foi até a porta da farmácia e tentou explicar o que aconteceu, mas ninguém lhe deu ouvidos. Viram dona Clotilde curada e queriam a tal pílula.

— Não adianta seu Ludovico. Eles acham que o remédio cura o Covid, mas a lei manda ficar em casa em quarentena. O que vamos fazer?

Dura lex sed lex. A lei é dura, mas deve ser cumprida.

— Para com esse latim Ludovico! Estamos em guerra contra o Covid e ninguém consegue prever quando teremos paz.

Si vis pacem, para bellum.

— O que é isso seu Ludovico?

— Se você quer a paz, então prepare-se para a guerra. A quarentena é obrigatória nessa guerra, e todos queremos a paz. Vou dar o placebo, pedir que façam uma novena e não saiam de casa por duas semanas. Alea jacta est.

— O que ele disse à doutora?

— A sorte está lançada. Ele não perde a mania do latim.

— Seu Ludovico, ouvi que tem gente que quer se isolar por um mês!

Abundat non pejus.

— Ô seu Ludovico, não precisa ofender.

— Ele só disse que o que abunda não prejudica, e eu concordo. Melhor se resguardar mais do que menos tempo.

A notícia se espalhou no vilarejo. O cônego Pêra, preocupado com o envolvimento de sua fé, visitou Ludovico na farmácia e encontrou o prefeito Epaminondas, seu desafeto, preocupado com a possível desobediência ao decreto de isolamento social. Atento ao comentário geral, Alberto Roberto, único repórter da rádio Difusora de Cucuí, correu até a farmácia. Ao chegar, viu os dois desafetos, o cônego e o prefeito, conversando cordialmente, cada um com um frasco de pílulas na mão. Ambos disseram ao repórter que a igreja e a prefeitura decidiram apoiar a campanha.

Com a repercussão da notícia do apoio da igreja e da municipalidade à campanha, em apenas dois dias toda a população passou pela farmácia para retirar o “medicamento”, de graça, custeado por verbas públicas. Um frasco com dezoito pílulas para cada pessoa, duas vezes ao dia durante a novena e mais cinco dias de repouso.

— Parabéns amor. Você fez o que os políticos não conseguiram nem com ameaça de prisão. Todos ficaram em casa duas semanas sem protestar.

— Eu não fiz nada a não ser ouvir e interpretar a voz deles.

— E desde quando esse povo sabe o que diz ou o que é preciso fazer?

Vox populi, vox dei.

— Mais latim. Eu não aguento.

A pandemia terminou, deixando rastro de tristeza pelo país, mas nenhum habitante de Cucui de Las Palomas foi contaminado. Alberto Roberto, em seu programa Balanço Semanal, afirmou que nos momentos de crise, se as autoridades trabalharem unidas, inclusive os desafetos, todos se beneficiam. A união improvável entre fé, política e ciência, com apoio da mídia, livrou Cucuí do vírus. Como seria bom se o país seguisse o exemplo!



Revisão ortográfica: Anne Preste


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