Pera aí. Na Piraí, não!

por Appio Ribeiro

25.03.2020

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele. Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.


Hoje sei que um tal de Horário Sabino, na década de 40 (do século passado), era o dono da Companhia City, que fez os bairros dos Jardins, do Pacaembu, Butantã, e estava fazendo o loteamento da City Lapa (no Alto da Lapa). Ele foi esquecido, mas os bairros que criou são exemplos de urbanismo até hoje. Mas, o que importa é que, quando eu tinha quatro anos, e morando na Rua Vespasiano, lembro do meu pai entusiasmado falando da casa nova que estava construindo na City, e mostrava uns papéis grandes com desenhos que eu não entendia. Só entendi quando ele me levou com minhas irmãs a uma construção. Seria a minha futura casa pelos próximos 25 anos. Aí, num dia nós fomos lá como para uma festa. O chão ainda de terra, paredes sem revestimento, pilha de tijolos, areia e sacos de cimento por todos os lados... eu não entendia aquela festa num lugar assim. Meu pai a oferecia para todos os que trabalhavam na obra e mais uns parentes e amigos convidados.

Só sei que os pasteizinhos que minha mãe fritava eram uma delícia. E era muito gozado ver aquele barril de madeira e aros de ferro, com uma enorme pedra de gelo em cima, jorrar espuma pra tudo quanto é lado quando batiam com aquela vara de metal que tinha uma torneira por cima. Depois, jarros de chopp que levavam a bebida para todos os copos. Era tal de “cumera”. Aprendi, depois, ser a “Festa da Cumeeira”, tradição de se festejar com os familiares e homenagear os trabalhadores que construíam o novo lar. Comemorava-se quando era colocada a última telha. Diziam que também era para dar sorte. E deu.

Quando nos mudamos, meus avós e tios diziam que minha casa era a “fazendinha” e ficava superlonge. Mas a rua era sem calçamento nem calçada, sem luz na rua, sem esgoto, sem água encanada, sem ponto de ônibus. Era a Rua Piraí. E poucos terrenos já tinham casa. Mas havia muitas e enormes árvores e a mais alta em frente da minha casa, um eucalipto cujo tronco nem três homens conseguiam abraçar. Do outro lado da rua não havia casas, só um ”valo”, com a mata e enormes eucaliptos. Do outro lado do “valo” que acho que tinha uns cem metros de largura, havia outra rua (a Araçatuba) com casas só de um lado e todas de frente para o valo. (Hoje o “valo” é um parque, um bosque).

Quando mudei pra lá aquele lugar era uma delícia. Ele me deu a liberdade de viver em meio à mata com um córrego lá embaixo do valo, jogar bola na rua de terra, trepar nas árvores e fazer guerra de mamona com estilingue. Estilingue pra mim era só pra isso. Pois, por influência de meus pais, o respeito aos animais e à natureza era imperativo. E naquela casa eu me sentia um nativo. Acho que isso estava no meu DNA. Tanto que eu não permitia que nenhum moleque atirasse pedra em nenhum passarinho. Eu ia pro pau, se necessário. Graças a Deus, nunca foi necessário.

Minha ligação com os animais me levava a sofrer até gozação das minhas irmãs, só porque eu fazia enterro de passarinho. Quando aparecia um morto, fazia uma caixinha, cavava um buraco, colocava o bichinho lá, punha uma pedra, colocava uma cruzinha de gravetos, punha umas florzinhas e rezava. Só por isso.

O amor que eu tinha pelos meus cachorros e gatos e até um cabrito só era menor do que o ódio que tinha de um vizinho, um alemão, que maltratava sua matilha de cães grandes. Eu sofria ao ouvir de casa os latidos e grunhidos e a voz do alemão gritando e batendo nos cachorros indefesos. E mais ódio me dava quando ele passava em frente a minha casa, de botas até os joelhos, boné, colete cheio de bolsos, com embornal e mochila, como que fardado todo de caqui. Seus quatro cachorros, presos por guias, uivavam e o alemão (lembro do nome, mas não digo) parecia orgulhoso, levando pendurada ao ombro uma espingarda enorme. O maldito ia caçar! Quanta praga eu roguei! Quanto não rezei pra ele não acertar nenhum bicho e acertar o próprio pé. Não adiantou.

Ela batia nos seus cachorros, e eu me abraçava aos meus. Chegava a ficar dentro das casinhas deles e ficar conversando como fossem meus amigos. E eram. Um deles, inesquecível, era o Jerry, um vira-lata preto. Ele me ouvia e compreendia perfeitamente.

E por falar em vira-lata, naqueles primeiros anos de 1950, o lixo era colocado pelas famílias em grandes latas que ficavam na frente das casas. Quando um cão curioso ia cheirar e pegar alguma coisa dentro dela, acabava virando a lata. Hoje são fura-sacos.

Não existia caminhão de lixo. Era uma carroça, metálica, com tampas em cima da caçamba, onde o lixeiro despejava o conteúdo das latas que ia recolhendo. E esse carroção era puxado por dois burrinhos. Eles não eram burros, pois sabiam quando andar e parar. Bastava um grunhido do carroceiro do lixo e eles atendiam.

Mas aquele carroceiro da Rua Piraí justificava tudo o que de pejorativo o nome tinha: tosco, grosseiro, ignorante, mau. Aquele lixeiro não se limitava a comandar os burrinhos gritando ou assobiando. Tinha que usar o chicote, sempre na sua mão ou no ombro. Mal ele despejava o lixo, com uma mão levava a lata de volta e com a outra sapecava o chicote nos burrinhos. Aquele estalo doía no meu coração. Eu via que era totalmente desnecessário chicotear os animais. Eles saíam andando sem aquilo. Era evidente que o maldito fazia aquilo por prazer, por ruindade, porque era mau, mau mesmo! Seu aspecto era desagradável. Baixo, moreno, atarracado, mal barbeado, de macacão azul sempre sujo, movimentos brutos.

Num dia, eu estava brincando no jardim de casa, e lá vem o lixeiro. Pegou o latão numa casa, despejou, devolveu o latão e chicoteou os burrinhos. Mais uma casa, despejou, devolveu o latão e chicoteou os burrinhos. Mais uma casa e as chicotadas prosseguiam. Aquilo foi me torturando. Quando ele jogou o latão de lixo na minha calçada e levantou o chicote eu já estava na calçada. E corri pra cima dele berrando, xingando de tudo quanto era nome feio que conhecia... me agarrei ao seu braço, gritando, chorando... e morrendo de medo, é claro. Ele se assustou e acho que nem entendia o que estava acontecendo. Só sei que ele sacudia o braço, gritando “me larga! sai daqui!...”. Em segundos, meus gritos trouxeram minha mãe pra rua, armada com uma vassoura que lhe deu coragem para investir contra o lixeiro e me apartar. Gritaria! Mais vizinhas apareceram... protestos. Foi um corre-corre ou como se diz hoje, um “auê”; na verdade, armei um grande “barraco”. Vergonha.

Claro que depois tomei bronca, puxão de orelha e palmadas. E continuou quando meu pai chegou e soube da estória. E aí, enquanto suas palavras iam me dizendo que aquilo não era certo, que eu não devia agir assim, que foi um erro... seus olhos me diziam: “eu me orgulho de você, meu filho”.

A Rua Pirai é bem curtinha. Mas pra mim foi grande. E outras marcas ela deixou. Mas elas são pra outra estória. Mas nesta estória sei que, se eu for pro céu, vou encontrar dois burrinhos andando por lá... e aqui eles nunca mais foram chicoteados na Rua Pirai.

E aquele lixeiro, por muito tempo, quando entrava naquela rua e pegava o chicote devia pensar: “Pera aí, na Piraí não!”