A Piraí também foi cultura

por Appio Ribeiro

27.03.2020

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele. Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.)

Aquela ruazinha da Lapa City marcou minha infância e juventude. Mais a infância que a juventude. Deve ser normal, porque quando crianças nosso hardware ainda está quase vazio e todas as experiências marcam.

Quem não se lembra das brincadeiras de crianças? As minhas eram a bola, brincar de bandido e mocinho, bolinha de gude, guerra de mamona, trepar nas árvores feito Tarzan e aproveitar aquela “floresta” na frente da minha casa. E atrás também, porque além do meu quintal ficava a divisa do terreno vazio que dava frente para a Rua Pio XI.

Você certamente se lembra de suas brincadeiras de criança. Diferentes das minhas, talvez, mas inesquecíveis também. E das suas travessuras? A minha maior era tocar campainha e sair correndo. E a sua?

E dos seus vizinhos quando criança? Nos primeiros tempos de Piraí, não existia televisão em casa. E eu fui um “televizinho” (lembra disso?) na casa do Oscar, uma família húngara. Mas só às sextas-feiras, para ver os “Reis do Ringue” - aquela luta livre fajuta, com heróis e vilões.

Outra vizinha que marcou era uma jovem senhora, que eu achava ser mais que bonita: muito elegante. Passava em frente de casa sempre de vestido, bolsa, luvinhas. Quando não de casquete – aquele chapeuzinho que as mulheres usavam naquela época. Certa vez tomei o ônibus com ela: bolsa e sapatos amarelos, vestido branco de bolinhas amarelas, luvas e um chapeuzinho branco. Pra mim era o sumo da elegância. Era o protótipo da esposa elegante.

Com muita frequência passava em frente de casa um senhor sempre de terno azul-marinho ou preto, camisa branca e gravata preta. Usava bigode, era magro e alto. E cabelos pretos e cheios. Sempre sério, olhando para o chão compenetrado, carregando um estojo de instrumento. Nunca soube em que casa ele morava, mas devia ser bem perto.

Um dia fui levado ao Teatro Municipal, num domingo de manhã para assistir aos “Concertos para a Juventude”. Música erudita em casa tinha no rádio (Rádio Gazeta, a emissora de elite) e discos do meu pai. Mas, estar naquele teatro lindo, ver pessoalmente aquela orquestra enorme foi impressionante. E impressionou a entrada do regente, ereto, pomposo, usando um paletó branco com gravata borboleta preta. Era o maestro Armando Belardi. Não lembro qual música começaram a tocar. Só lembro que me emocionei e fiquei fã da música de concerto até hoje.

Mas naquele dia eu notei, logo à esquerda do maestro, bem na frente da fila dos violinistas, um músico compenetrado, vigoroso, de cabelos pretos cheios, de bigode, friccionando intensamente as cordas do violino. Era ele! O “MEU” vizinho da Rua Pirai! Era violinista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, um artista! A Piraí também era cultura. Para mim foi, e até mais.

Eu não tinha ainda 10 anos quando começaram a erguer uma construção no fim do valo da Piraí, na curva da Rua Suassuí, que sai na Rua Araçatuba. Várias semanas de curiosidade, vendo os trabalhadores erguer aquele prédio “moderno”, de um só pavimento.

Breve soubemos. Era um prédio público, da Prefeitura, até que descobrimos: uma “Biblioteca”.

Virei frequentador de primeira hora. Desde que abriu foi o meu destino, quase todo dia trocava a bola por ela. Ela era moderna, limpa, arejada, toda em linhas retas, e salas com várias estantes e muitos livros.

Podia se entrar livremente, falar com uma funcionária, e pegar um livro e ler tranquilamente.

O prédio era todo aberto e não tinha grades e nem portões como hoje, para se proteger. Agora é o “Teatro de Memória e Convívio da Lapa - Cecília Meirelles”. Hoje tem convívio na placa. Antes, tinha convívio sem grades.


Dos vários volumes que folheei, uma coleção me atraiu e fiquei preso a ela por um bom tempo. Os três ou quatro volumes da História do Brasil, de Rocha Pombo. Era um jeito diferente de contar a História. Eu chegava até a rir de certas descrições. E aquilo me fez gostar da História, para o resto da minha vida. Tanto que, depois de ter trabalhado por décadas, já ter minha empresa, e estar mais tranquilo, fui fazer o que ficou pendente: o curso de Mestrado na USP. Mestrado em quê? Em História. A Piraí também foi cultura.