Felicidade na Piraí

por Appio Ribeiro

31.03.2020

Manhã na Rua Pirai daquela época de criança.

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.)

Na rua Piraí passei o Natal por vinte anos. Desde os cinco anos, graças a Deus, nunca faltaram certos símbolos e rituais, e pelos outros quase 50 anos, os mantive em outras ruas. São as memórias da família que passamos adiante, para que a próxima geração não nos esqueça.

Para mim o Natal tinha forma e tinha cheiro. O cheiro agradável do pinheiro enorme, posto dentro de casa, com sacrifício físico do meu pai que o comprava não se sabe onde, e o trazia nos ombros. A casa toda ficava perfumada.

A sala de casa mudava a sua disposição e forma para acolher esses dois símbolos: o pinheiro e o presépio.

E havia alguns rituais, como a montagem da árvore de Natal. Todo ano eram abertas as caixas de papelão e desembaladas uma porção de enfeites: bolas de vidro colorido, botinhas, bengalinhas, bonequinhos e demais enfeites, além dos flocos de algodão para imitar a neve, os metros de fios com lampadinhas que piscavam e a ponteira de vidro colorido, para ficar no topo da árvore, que meu pai dizia apontar para o céu. Mais que esses objetos, o importante era a montagem. Semanas antes, toda a família tinha de se reunir para a sua montagem. -“cuidado com as bolas que são de vidro”, “coloca isso naquele outro galho”, “deixa que eu coloque que você não alcança”... Era um ritual de horas (de convívio) e, por fim, era ligado o cordão de lâmpadas na tomada: a árvore se iluminava. E toda a casa se iluminava, pois começava o Natal.

Outro ritual era o presépio. Sobre um móvel, com menos de um metro, era colocado um forro, e uma folha e papel-alumínio. Aí se pulverizava com a serragem que meu pai tinha tingido de verde para imitar um gramado. O papel-alumínio formava um laguinho. Pedras que eu pegava na rua viravam rochas e galhinhos colhidos viravam árvores desse cenário. E todas as peças de gesso – São José, Virgem Maria, três Reis Magos, pastores e pastoras, vaquinha, burrinho, carneirinhos... eram colocadas nos seus lugares. Menos uma: o menino Jesus. O berço dentro da manjedoura ficava vazio.

Na véspera de Natal, sob os pés da árvore apareciam pacotinhos de presente, e a curiosidade: o que será? Para quem é? E meu pai mantinha a curiosidade e minha mãe não permitia que mexêssemos neles. À noite, a ceia. Era simples, mas sempre tinha as frutas secas (nozes, amêndoas, avelãs), figos secos. E a conversa à mesa tinha de se estender até a meia-noite, com todos acordados. Era quando achávamos que o Papai Noel passava em casa, invisível, precedido por um sininho, e deixava alguma coisa que não saberíamos o que era (os presentes dentro das caixas?). Não importava, ele viera. Aí, meu pai trazia nas mãos e, com todo o carinho e respeito, colocava o Menino Jesus no seu berço. Uma oração não formal nos lembrava de agradecer e de pensar em outras famílias para que tivessem o mesmo. Aí, vamos abrir os presentes. Simples, baratos, não éramos ricos. Depois, cama.

Numa certa manhã, acordei com o nascer do sol e não consegui dormir. Fui para a sala, subi no sofá e abri a janela. Era uma janela de ferro de correr, e os vidros transparentes tinham um relevo de círculos e triângulos raiados. Subi no sofá e abri a janela. O frio da manhã entrou pelo meu rosto. Com aquele sopro acabei de acordar. Inspirei fundo e senti algo estranho ao ver a neblina por entre os eucaliptos e o mato, como nuvens que tivessem descido. A sala, ainda desarrumada da noite de Natal, me lembrou o quão bom tinha sido. Senti uma felicidade me invadir como nunca tinha conhecido. A família junta e em paz, a mesa, os presentes, o brinquedo que ganhei, o perfume do pinheiro se misturando ao dos eucaliptos... Aquele lugar, o meu lugar... Até hoje eu não entendo o que me aconteceu.

Senti como que invadido por algo que não sei o que era. E eu comecei a chorar. A chorar de felicidade!

Jamais me esqueci desse momento, na rua Piraí.

Revisado por Maitê Ribeiro

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