Para além da infância - os autistas em aplicativos de relacionamento

Em um mundo cheio de preconceitos, como é ser autista em aplicativos de paquera?


Rafael Isenof

21.07.2021

Pare um minuto e reflita: o que lhe vem à cabeça quando falo sobre autismo? Crianças em crise? Se balançando o dia todo? Bom, é verdade, autistas assim são reais, mas como já diz o nome, o “Transtorno do Espectro Autista” é caracterizado por ser um espectro, significando que, mesmo que existam algumas bases diagnósticas, cada autista é único e possui suas próprias características. De qualquer forma, independentemente de suas particularidades, os autistas crescem e, como quaisquer seres humanos, se relacionam, amorosamente ou não.

Justamente buscando quebrar alguns paradigmas sobre a temática, eu, um autista, conversei com outras pessoas no espectro perguntando sobre a relação delas com apps de paquera, trazendo alguns relatos de casos reais. Assim sendo, contei com a colaboração de autistas que participam de grupos dos quais também faço parte.

Tendo em vista as dificuldades de interações sociais que muitos autistas vivenciam, a internet tem se mostrado um dos principais meios para iniciar e manter conversas, fato que também é válido no âmbito amoroso: aplicativos facilitam a aproximação entre pessoas, pelo menos é o que deveria acontecer na prática.

Surpreendentemente (de forma negativa, infelizmente), alguns dos entrevistados relataram que tiveram o uso do termo “autista” vetado de seus perfis no Tinder (talvez o mais famoso aplicativo de relacionamentos da atualidade), sob a justificativa de que infringiria as regras da comunidade por ser uma palavra “ofensiva”. Com o intuito de apurar as motivações de tal veto, entrei em contato com a Assessoria de Imprensa do Tinder e, até o momento da publicação da matéria, não obtivera nenhum retorno. É claro que uma justificativa para a impossibilidade de usar “autista” no app seja justamente a de evitar a adjetivação do autismo e a sua transformação em algo pejorativo/xingamento, mas será que um bloqueio total seria a melhor resposta?

De qualquer forma, é ainda mais grave o desrespeito sofrido por pessoas no Espectro Autista nas conversas com outros usuários, fato facilmente apurável em conversas com autistas que são abertos em relação ao próprio autismo e que se utilizam dos aplicativos. É o caso de um dos entrevistados, que enviou prints de um diálogo com uma de suas combinações:

No caso em questão, o entrevistado, que preferiu não se identificar, foi subjugado por expressar na descrição de seu perfil que ele é “esquizofrênico e autista”, sendo que sua combinação só o curtiu para questioná-lo, no sentido de que ele estaria perdendo tempo no app por ser quem é.

Ana Fernandes, uma autista de 22 anos, evidenciou ainda mais o preconceito sofrido nos aplicativos, destacando acreditar que o fato de ser autista afastava possibilidades de matchs: “Eu falei que eu era autista logo na descrição do meu Tinder (para eliminar logo embuste, né??). Eu não sei porque, mas eu recebi poucos matches. Deve ser por eu ser autista e as pessoas já não queriam”.

Como se não bastasse a existência dessa pré-seleção, muitos ainda têm seus diagnósticos questionados e desvalidados, movimento que perpetua estereótipos e pode afetar o psicológico do próprio autista, vez que o processo para conseguir um laudo é oneroso e cheio de dificuldades, inclusive podendo causar traumas.

Nessa toada, cabe destacar que mulheres, cis ou não, costumam ser mais afetadas pelo preconceito, o que se “justifica” pela ideia enviesada e datada de que só existem autistas homens, concepção que se demonstrou manifestamente errônea há muito tempo, mas que continua a ser propagada em filmes e séries, por exemplo. Mulheres autistas existem e não são poucas.

É claro, porém, que existem algumas exceções. Mesmo que minoria, histórias de autistas que iniciaram relacionamentos saudáveis através de aplicativos existem. A Nicolly Pereira do Amaral, de 23 anos, compartilhou comigo a história do seu relacionamento que já completa um ano: “primeiro eu tinha escrito ‘sou autista, se você usa essa palavra como ofensa pode passar reto’ e fui barrada, eles excluem a descrição. Aí quando troquei para ‘asperger’ não aconteceu”. Nicolly, ao conhecer seu namorado, utilizava a seguinte descrição:

O termo “asperger”, a título de contextualização, refere-se a um subtipo de autismo considerado mais “leve”, também conhecido como “autismo de alto funcionamento”. O diagnóstico da Síndrome de Asperger, contudo, deixará de existir, já estando em estado de transição para o desuso e fazendo parte do “autismo leve” ou “autismo de baixa manutenção”. Tal alteração é justificada, principalmente, pela ligação de Hans Asperger, psiquiatra que deu nome à síndrome, com o nazismo. Se podemos colocar a palavra “asperger” nos nossos perfis, por que não podemos colocar “autista”?

É amplamente sabido que as pessoas com deficiência são marginalizadas em vários setores e sentidos, o que não é diferente para autistas, sempre vistos como pessoas incapazes de viver em sociedade. Toda a discussão é recente, especialmente ao nível acadêmico, visto que vigorou sempre a ideia de que autistas sempre serão crianças. Ainda existe um longo caminho a ser percorrido em direção a conscientização acerca do que o Transtorno do Espectro Autista realmente é, de quem nós realmente somos. Somos crianças, adultos e idosos... Flertamos, namoramos e casamos, e, se não quisermos nada disso, também está tudo bem.

A verdade é que, antes de qualquer coisa, todo autista é humano e, com isso, tem o direito de ser quem quiser!


Revisão ortográfica: Anne Preste

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