Meritocracia: O que devemos uns aos outros como cidadãos


Questões que envolvem ética e moral são tratadas pelo filósofo americano contemporâneo Michael Sandel, e provocam indagações sobre a sociedade e suas normas para responder o que se pode e o que não se pode.


Sonia Okita

17.11.2021

O que é direito chamar de dever e o que é dever chamar de direito, e vice-versa, o que é dever chamar de dever e o que é direito chamar de direito?

Michael Sandel, 68 anos, é professor de filosofia política da Universidade Harvard desde 1980. Seus questionamentos sobre ideias pré-concebidas sobre justiça, moral e ética tem atraído pessoas por toda parte e multidões em estádios, para ouvi-lo falar sobre a vida em sociedade. As aulas lotam auditórios com alunos ansiosos por ouvi-lo explorar ideias complexas em debates sempre calorosos.

Autor da obra Justiça: o que é fazer a coisa certa, publicado em 2009 e do mais recente A Tirania do Mérito, Sandel foi entrevistado no programa Conversa com Bial em março de 2021.

A desigualdade entre as pessoas é aceitável? Até que ponto?

São questões eternas da humanidade, e talvez nunca tão urgentes como hoje. A pandemia expôs de maneira chocante os níveis da desigualdade e as contradições entre o que se fala e o que se faz.

Michael Sandel, no campus de Harvard

Nesta entrevista, Sandel supõe que as pessoas têm interesse em suas aulas e palestras devido à lacuna que existe para debater questões a serem confrontadas sobre ética, justiça e desigualdade. A pandemia intensificou o degrau das diferenças que já existiam, mas há um possível lado positivo e esperançoso, o dos valores humanos, que em boa hora devem ser revistos. Embora algumas pessoas pudessem trabalhar em casa em segurança, outras precisaram sair e se expor ao risco de ir trabalhar, os funcionários de entregas em domicílio, atendentes do comércio e de serviços, e principalmente dos hospitais, os trabalhadores essenciais.

O filósofo afirma que a desigualdade trabalhista ficou muito evidente nesta pandemia. Professor de Harvard, um astro do pensamento, dirige seu novo livro aos gurus progressistas. Acusa-os de abraçarem a meritocracia, que levou a um legítimo ressentimento das classes trabalhadoras.

“E tivemos que reconhecer a dependência que temos destes trabalhadores que muitas vezes são ignorados e nem sempre são bem pagos e respeitados como deveriam.”

Em A Tirania do Mérito, sobre os descaminhos da ideia de meritocracia, tão cara ao sonho americano e ao mundo ocidental, o professor questiona o que aconteceu com o bem comum. A distorcida imagem do individualismo desvincula o homem da sociedade e do estado, que tanto podem defender as liberdades individuais, mas também exigir que um poder central deva interferir na defesa dos interesses de grupos identitários, como e decidir quem merece mais ou menos reconhecimento. Pelo conceito convencional, a meritocracia pelo próprio esforço individual é melhor visto que por herança.

Bial pergunta “como a ideia inicial da meritocracia mudou? Antes, tão bem vista e exaltada tempos atrás, tanto pela esquerda quanto pela direita (referindo-se à ideologia política) contra a desigualdade para promover a justiça social, é difícil de negar alguns aspectos positivos. O sucesso pelo esforço pessoal é um mérito mais justo do que por vínculos familiares. O que mudou esta ideia original?”

“Quem faz sucesso tende a achar que é graças a si mesmo”

Sandel responde que meritocracia tem um apelo considerável, do nepotismo (favoritismo, parentelismo, apadrinhamento), do preconceito (sentimento e opinião hostil gratuita sem exame crítico), da discriminação (isolar, desagregar, segregar) ou se for por privilégios hereditários; por algum tempo a meritocracia foi vista como alternativa a essas fontes de injustiça.

O que acontece hoje em dia é que a meritocracia se transformou em privilégio hereditário, diferente do privilégio aristocrático de fortuna e propriedade, mas está ligada à ideia de que se deve ingressar em boas universidades para obter qualificações, para no futuro enriquecerem com bons empregos. Os pais ricos já descobriram isso para dar aos filhos riqueza cultural, com aulas personalizadas, escolas particulares, aulas de música, artes, esportes, o que julgam necessários para poder competir na meritocracia, portanto, deixa de ser uma alternativa à desigualdade. Ao contrário, provê uma justificativa para a desigualdade e cria uma sociedade de vencedores e perdedores. Esta é a principal crítica exposta no livro.

Bial interpela se “a sociedade de vencedores e perdedores já não era intrínseca no estilo de vida americano antes da ideia da meritocracia?”

Segundo Sandel sempre houve uma divisão entre os bem sucedidos e mal sucedidos, mas agora o agravante é a atitude perante o sucesso, na crença de que foi merecido devido ao próprio esforço por isso faz jus também a todas as recompensas que o mundo concede aos bem sucedidos. E o pior, “se o sucesso só depende de nós mesmos, por consequência, os mal sucedidos também são responsáveis pelo próprio fracasso criando a ideia de que o insucesso foi merecido”, diz.

A “soberba meritocrática”, que é a atitude dos vencedores, provoca sentimentos de humilhação e desmoralização aos que ficaram para trás e creem que o fracasso é culpa deles mesmos.

Isto torna a meritocracia mais revoltante, e a indignação perante a desigualdade alimenta a revolta populista.

Pedro Bial lembra de histórias de imigrantes nos Estados Unidos, de homens e mulheres empreendedores, e da eleição do presidente afro americano Barack Obama, e pergunta se não seriam bons argumentos em favor da meritocracia. Neste caso, Sandel argumenta que certas circunstâncias como ter talento inato, sorte, virtudes e obras ao acaso também contribuem para o sucesso, porém estes fatores são esquecidos e não contabilizados se considerarmos que o sucesso depende somente de nós mesmos, e tira a responsabilidade de olhar para os menos favorecidos e menos instruídos.

E qual é a saída?

“A educação básica de qualidade aos pobres é a melhor igualdade de oportunidades, mas não é só isso, precisamos mudar a mentalidade de oferecer não só uma ampla mobilidade individual e ensino superior, pois é um erro fazer do diploma universitário o único requisito necessário para uma vida digna e ter um trabalho decente.”

Muitas pessoas acreditam que o trabalho que executam não é respeitado. Isso gera ressentimento e raiva, e mágoa legítima, muito bem explorados por políticos populistas, o que explica a reação da extrema-direita, o negacionismo, a intolerância, o tribalismo, males sociais provocados pela meritocracia distópica, o oposto da realidade.

Durante a pandemia presenciamos ceticismo, descrença em especialistas de diversos setores e da saúde pública, justamente no momento em que mais precisamos de confiança nas recomendações de saúde para subsistir à pandemia.

E qual é o motivo para tanta desconfiança nas recomendações de saúde, que se tornou um problema político?

O uso de máscaras e tomar vacinas foi politizado, tanto nos Estados Unidos como no Brasil. Uma das explicações para esta polarização é uma tendência ao ódio aos especialistas. Há algumas décadas, acreditar em economistas e tecnocratas asseguraram que a versão de mercado neoliberal da globalização levaria prosperidade a todos (neoliberalismo é uma doutrina socioeconômica que defende a livre concorrência de mercado que se propõe a auto regulação com mínima intervenção do Estado). Quando a pandemia chegou, esta tendência enraizada no ódio contra o conhecimento e suas diretrizes propiciou aos populistas autoritários de direita partirem para o ataque aos especialistas dizendo que não era preciso usar máscaras e nem tomar vacinas, como se a palavra dos especialistas de nada valesse.

Em outra entrevista ao jornal espanhol El País, em setembro de 2020, Michael Sandel explicou ao jornalista Pablo Guzmón que o termo meritocracia foi cunhado há meio século pelo sociólogo britânico Michael Young considerado um socialista atuante no partido trabalhista inglês, que lançou um livro de ficção The Rise of Meritocracy, (a ascensão da meritocracia em tradução livre), em que faz uma distinção entre pessoas mais inteligentes e menos inteligentes, numa Londres futurista, como um prenúncio do que a distinção de privilégios acirra o ódio e o rancor entre grupos de trabalhadores. Desde então o termo meritocracia passou a ter um caráter pejorativo.

O termo meritocracia tem um lado obscuro porque, na verdade, aumentou as diferenças pela globalização que criou uma bolha social de exclusão.

Políticos candidatos à presidência nos Estado Unidos exploraram o termo para dar sentido ao discurso de ideal de ascensão com Reagan, mais tarde com Tony Blair no parlamento inglês, e por Obama “yes, we can”. É animador ouvir um discurso otimista de prosperidade, mas obviamente não será possível igualmente para todos. Políticos populistas exploraram esse ressentimento sendo eleitos pelo voto dos excluídos, e classes trabalhadoras votaram em um republicano (Trump), inversamente ao que costumava acontecer, como foi dito anteriormente.

E contrapartida movimentos antirracistas como Black Lives Matter surgem e se tornaram uma força civil e idealista, construindo ligações entre classes e gerações, não só entre os norte-americanos, mas também com reflexos no mundo inteiro.

Imagem sinarqmg.org.br

Revisão ortográfica: Anne Preste


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