Reclamações


Tem gente que só reclama e nada faz. Carlos Paz resolveu agir.


Laerte Temple

30.01.2022

Foto: Reprodução internet

Tem gente que reclama de tudo. Alguns reclamam tanto que nem sabem do que estão reclamando. Ouvi muitas vezes minha avó dizer: “vá reclamar com o bispo” e eu nem conhecia o bispo! Hoje existem órgãos públicos, privados e até sites para registrar reclamações, mas são insuficientes para atender a demanda, inclusive dos que reclamam dos órgãos de reclamação. Tem gente que nasceu para reclamar, ou para ser alvo de reclamação. É o caso de Carlos.

O parto normal foi complicado. O trabalho durou mais de 18 horas, a mãe perdeu o último capítulo da novela e o pai a final do campeonato. Ambos reclamaram bastante. O obstetra também reclamou do trabalho que teve para passar a cabecinha do bebê, com 44 cm de diâmetro, que causou 27 pontos cirúrgicos na mãe. Mais reclamação. Nome escolhido: Carlos, sobrenome, Paz. Moleque chato e reclamão, que nunca honrou o sobrenome.

Aos 6 anos aprendeu a nadar sozinho. Sua mãe o fazia atravessar o rio numa pinguela com um saco de papel cobrindo a cabeça. Sempre caia, mas 15 minutos depois estava de volta. Na escola, reclamava das aulas, colegas, professores, e todos se queixavam com seus pais. Quando prestou o serviço militar, vivia detido devido às reclamações. Sua baixa foi das mais baixas. Os namoros duravam pouco porque as garotas reclamavam de seu temperamento. Aos 21 anos, seu ego desencarnou e deu entrada numa clínica de recuperação por fadiga emocional.

No trabalho, de tanto reclamar, nunca passou do período de experiência, mas ganhou muito dinheiro com reclamações trabalhistas, até o advogado o abandonar porque ele reclamava dos honorários.

Eterno insatisfeito com a vida, Carlos tinha bronca de tudo: pais, governo patrão, sogra (embora fosse solteiro), políticos, bancos, seguro saúde, SAC, TV paga, celular, inflação, etc. Liderou um abaixo-assinado, que teve só a sua assinatura, exigindo a unificação de todos os órgãos de reclamação. Para ele, esses serviços são esparsos de propósito, para que a reclamação seja ignorada. Mesmo sendo o único signatário, o abaixo-assinado ganhou espaço na mídia e um deputado campeão de reclamações, propôs um projeto de lei criando o PRF — Posto de Reclamação Federal — para centralizar o serviço. Mas era muito burocrático e lento. Necessitava várias assinaturas, testemunhas, papéis, carimbos, protocolos e acabou se tornando um cabide de empregos, gerando mais reclamações. Foi desativado quando a Polícia Rodoviária Federal reclamou que a sigla homônima denegria sua reputação.

Os culpados eram sempre os mesmos: sociedade, família, sistema político, patrão, burocracia, ONGs, mídia, etc. Acreditava existir um complô universal para atazanar a vida das pessoas e dissuadir toda e qualquer reclamação.

Usou as redes sociais para convocar uma manifestação contra a ordem social, para o dia 12 de junho, 21 horas. Era uma sexta-feira, Dia dos Namorados, e só ele compareceu, mas o evento chamou a atenção de Clô, transformista, hair stylist e design de sobrancelhas, que solicitou um panfleto que ele distribuía, mas ninguém pegava. Ele ouviu Clô por horas a fio. Afinal, sua luta era justamente contra a falta de canais de reclamação e seu lema era “reclamar sempre e lutar pelos seus direitos”. Clô tinha muito a reclamar.

O relacionamento entre Carlos e Clô se intensificou, para alívio de sua família, pois ele se tornou mais afável e menos indigesto. Passou a apreciar artes plásticas, alta gastronomia, espetáculos de teatro e balé. Criou um blog de moda que lhe rendeu muita fama e dinheiro. Tornou-se muito requisitado para programas de TV, revistas, reality shows, jurado em desfiles de moda e campanhas publicitárias, sempre com apoio de Clô, cujas dicas foram fundamentais para seu sucesso.

Clô o levou a videntes, feng shui, astrólogos, tarólogos e outros “ólogos”. Ele fez terapia de regressão e mudou radicalmente seus conceitos. Teve o visual repaginado, incluindo mega hair, sobrancelhas definitivas, silicone, peeling, depilação total a laser e roupas de sua criação. A transformação foi concluída com a mudança de nome, por sugestão da numeróloga Chantal.

Carlos Paz, agora é Charlote Peace, drag queen famosa, bem sucedida e respeitada no show business. Vive com Clô, sua alma gêmea, nome social de Clodoaldo Militão, ex cabo da Marinha, encanador e lutador de MMA. São felizes e não têm do que reclamar. Se a música não agrada, não reclame; apenas vire o disco. Segue o baile.

Revisão ortográfica: Anne Preste


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