Oportunidades


A crônica de um auxiliar de cartório e aprendiz de pastor que oficia um casamento.


Laerte Temple

23.01.2022

Foto: reprodução internet

Às vezes, a vida oferece oportunidades que nunca imaginamos. Ariel Pandolfo, de origem humilde, é pessoa séria e de conduta ilibada. Quer ser promotor e lutar pela ética e moral, mas muito jovem precisou ajudar a família e foi trabalhar num cartório, onde organiza a agenda dos casamentos e se encanta com as homilias do Juiz de Paz.

Num sábado, o doutor Palhares se atrapalhou com o horário e chegou ao cartório uma hora mais cedo. Ouviu vozes na sala de celebrações e foi conferir: era Ariel fingindo-se celebrante. Terminada a fictícia pregação, o juiz aplaudiu. Ariel, encabulado, disse que frequenta a escola do Pastor Jonas, de quem também é suplente de vereador. Quando chega mais cedo, pratica oratória. Passados três meses, o doutor Palhares lhe telefonou.

Ariel, preciso de um grande favor. Só você pode me ajudar.

Diga doutor.

Estou no hospital, com crise renal.

Quer que eu vá para aí?

Não, quero que celebre um casamento.

O doutor Palhares disse que tem uma celebração de união estável entre um viúvo, gigolô e dono de boate gay e um transexual, ex garoto de programa. A cerimônia é num condomínio de chácaras e a ata já esta pronta. É só passar no cartório, pegar o livro, o endereço e fazer o serviço. Como a união será apenas civil, sugeriu que Ariel inicie com breve preleção de cunho religioso. Nervoso, mas feliz com a oportunidade, ele tomou banho, vestiu o melhor terno, pegou o Fiesta 1.0 ano 2010, passou no cartório e seguiu para o evento.

Durante o trajeto pensou no que diria àquele estranho casal e lembrou-se do Pastor Jonas, para quem todas as pessoas sinceras merecem a benção. Atrapalhou-se com o mapa e entrou no condomínio errado. Disse ao segurança que é oficial de casamentos e perguntou o caminho para a bodas de Garlindo e Tamara. Seguiu a orientação, encontrou o endereço e foi recebido por Neide, a cerimonialista. Para conter o nervosismo, tomou uma taça de prosseco, depois mais uma e finalmente mais uma. Às 18h ele se posicionou diante do altar, no gramado. Os noivos chegaram numa charrete enfeitada.

Estamos aqui para celebrar a união de Garlindo e Tamara.

O som era ruim e ninguém ouviu direito, exceto Neide, que lhe passou um bilhete com os nomes Arlindo e Tânia Mara. Ariel, levemente alcoolizado e sem os óculos, olhou o bilhete e tudo lhe pareceu bem.

Vivemos novos tempos e hoje qualquer tipo de união soa normal. Até mesmo um rufião – disse olhando para o noivo – e um ex boy striper que se reencontrou num novo ser – falou dirigindo-se à noiva.

Os noivos, ele economista, ela filha de desembargador, entranharam o discurso, mas não quiseram criar caso. Os convidados passaram a prestar mais atenção. O pai da noiva ameaçou intervir, mas foi contido pela esposa.

Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és, diz a escritura. E aqui, pelo jeito, os pombinhos andam com companhias infernais – disse Ariel, rindo e soluçando. Muitos confundem prazeres mundanos com felicidade, mas aqui se faz, aqui se paga. Porém, diz a escritura, andai pelos caminhos retos, pois não lhes cabe saber quando será o dia e a hora. Levando uma vida desregrada, bebendo e praticando coito selvagem por dinheiro, não se alcança a salvação.

Os convidados se entreolharam, o pai da noiva, vermelho de raiva, pigarreou forte e Ariel prosseguiu:

Garlindo Pereira, gigolô e dono de bordel, aceita Tamara Jackson, ex Orlando Xavier, como sua ou seu, esposa, cacho, o que quer que seja, até que outro bofe a carregue?

Burburinho, tosses, pigarros, homens ajeitando a gravata e cruzando as mãos à frente ou às costas; mulheres se entreolhando, fulminando maridos e namorados. O pai da noiva decidiu intervir, mas Neide, a criativa cerimonialista, pegou o microfone de Ariel e disse:

Senhoras e senhores, confesso que também caí na pegadinha dos amigos do noivo. Recebamos o celebrante, monsenhor Bevilacqua.

Ariel foi escoltado até a saída do condomínio e esqueceu o livro de atas. Foi demitido do cartório, desistiu do curso de pastor mas, devido a um escândalo de propina e pedofilia, assumiu a vaga do vereador Pastor Jonas, cassado e preso. Agora sim, disse Ariel. Na Câmara Municipal, poderei trabalhar em prol da moral e da ética!


Revisão ortográfica: Leilaine Nogueira


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