A jovem carpideira


Avó explica ao neto o que faz uma Carpideira e relembra acontecimentos de quatro décadas.


Laerte Temple

16.01.2022

Liu Jun-Lin cobra o equivalente a R$ 1,2 mil por cada sessão de choro em funerais em Taiwan - Foto: BBC News Brasil

No município de Capim Seco, avô e avó levavam o neto de 10 anos para passar o fim de semana no sítio quando o garoto perguntou:

Vô, o que faz uma Carpideira?

Onde você ouviu isso?

Um amiguinho disse que a tia dele é Carpideira. Trabalha na roça?

Sua avó pode explicar melhor do que eu.

Querido, Carpideiras são mulheres contratadas para ir aos velórios, vestir luto e chorar o morto. Esse ofício existe há mais de 2 mil anos, originou-se no Egito sendo citado na Bíblia. Os antigos acreditavam que o pranto limpava a alma, preparando-a para a plenitude. A presença de Carpideiras no velório aumentava a importância social do falecido. Nas cidades do Interior ainda tem muita Carpideira.

O neto disse “maneiro” e pegou o celular para se distrair com games. A avó suspirou e relembrou fatos ocorridos há quase quatro décadas:

Romilda era a melhor cozinheira da pacata Poeira D’Oeste e sustentava a casa vendendo salgados, bolos, doces e outros pratos. O delegado Eduardo, noivo de sua prima Cleusa, arrumou para o preguiçoso Peçanha, o marido de Romilda, emprego de motorista noturno na Guarda Municipal, cargo tranquilo mesmo nas rondas da madrugada. Romilda também era Carpideira no cemitério municipal, em frente à delegacia. Quando tinha velório, ela dava um pulinho no túmulo dos sogros, rezava por suas almas e se queixava do marido. Depois passava a noite no velório e ficava de olho no safado.

Peçanha trabalhava à noite, dormia o dia todo e Romilda fazia jornada dupla e exaustiva. Tudo correu bem até ela descobrir que suas rondas favoritas eram no bairro da Luz Vermelha. Ficou muito brava e pediu ao doutor Eduardo para transferir o pilantra para a carceragem, obrigando o marido a passar as noites como babá de presos, sem rondas na Luz Vermelha.

A demanda por quitutes cresceu muito. Com o marido confinado à noite e dormindo o dia todo, Romilda deixou o trabalho no velório para cuidar apenas da culinária. A prima, que era chefe do serviço social da igreja, pediu-lhe para ensinar o ofício de Carpideira à Sheila, uma linda jovem que vivia e trabalhava num cabaré na Luz Vermelha. Cleusa queria salvar sua alma.

Romilda ensinou o ofício à Sheila e deu-lhe de presente um vestido de luto, manto e véu. Com três ou quatro trabalhos por semana ela poderia largar a vida promíscua. Funcionou bem até Cleusa chamar Sheila e Romilda para conversar. A moça recusou trabalhos no velório devido aos shows.

Você agora está fazendo shows? Que shows? – perguntou Cleusa.

Sabe, outro dia encontrei o doutor Peçanha....

Doutor Peçanha? – interrompeu Romilda. Ele é só um carcereiro!

É um cara legal que fazia rondas lá na Luz Vermelha. Ele disse que toda noite rola shows muito animados na carceragem.

Você trocou um trabalho honesto no velório por shows?

Dona Romilda, a senhora me ensinou a ser Carpideira e sou muito grata, mas o velório é quente, chato e só tem gente velha. Passo a noite de preto da cabeça aos pés, amuada e chorando. O café é frio, fraco e ganho só R$60,00 por trabalho. Perdi os clientes do cabaré, onde ganhava bem mais e ainda me divertia.

Mas seu trabalho agora é digno. O show é melhor que isso?

Melhor e mais divertido. Só tem gente legal, cerveja, coxinha e ganho R$120,00 por show. Faço strip, canto e danço nua, e ainda tem o sorteio. O vencedor paga R$30,00 por meia hora, sozinho comigo na cela. Quem quiser assistir paga mais R$10,00. Depois me levam de volta ao Cabaré e a madame Soraia me dá uma graninha extra porque em noite de show não tem ronda na Luz Vermelha. Sem a polícia, vão mais clientes, o Cabaré e as meninas faturam alto.

Quem vai nesses shows?

Policiais, carcereiros, o delegado Eduardo, o prefeito Jairo, até o juiz, doutor Jânio. Dona Cleusa, é como a senhora fala: quando a gente faz o que gosta, a gente se diverte e nem parece que tá trabalhando.

Cleusa largou o noivo e abriu a Rotisserie Carpis com a prima Romilda. O delegado Eduardo e Sheila casaram-se, mudaram para Capim Seco e hoje têm um neto de 10 anos. Peçanha foi demitido, comeu “acidentalmente” um quibe com veneno para rato e foi morar com os pais, na quadra 14, lote 8, subsolo, gaveta 3. Não teve direito a Carpideiras. Vida que segue.


Revisão ortográfica: Anne Preste


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