A cabeça latejava e o corpo estava dolorido. Donald queria fugir, mas estava nu. Enrolou-se na cortina e saiu. Gente ia e vinha, a pé e de bicicleta, todos nus. Os que o viram, repudiavam, viravam o rosto e até cuspiam.
— Psiu. Psiu. Ei, você aí. Entra rápido antes que te peguem. Você está louco, cara? Andando pela rua com o corpo coberto.
— Por que todo mundo anda pelado? O que está acontecendo?
— Ora, em que universo você vive?
— Sei lá. Acordei há pouco, com a cabeça latejando, o corpo doendo. Você tem o jornal de hoje? Pode ligar a TV no noticiário?
— Jornal? TV? Cara, você é doido? Tá querendo morrer? Já vi que é um dos nossos. Vamos para o porão e eu te explico.
O estranho explicou a Donald que há muito tempo houve uma grande mudança no planeta após a pandemia, que dizimou boa parte da população e enriqueceu muita gente. Depois, enquanto políticos, empreiteiros, corruptos, milicianos e o crime organizado se matavam disputando o poder, um grupo auto denominado Novo Normal, integrado por terraplanistas, milicianos, ecologistas, funkeiros e anarquistas, assumiu o controle. Veículos foram destruídos e só se anda a pé, de patins ou bike. Roupas são proibidas e todos foram esterilizados. Não existem mais homem ou mulher. Apenas humanos.
— Quem governa o Brasil?
— Não existe governo. Um comitê de gurus orienta as pessoas segundo as ideias da Greta, a musa mundial. No Brasil, neste ano, os gurus são Cabo Daciolo, INRI Cristo, Jean Willys e João de Deus.
— Que loucura. Se todos são estéreis, então o planeta vai acabar?
— Segundo a Greta, o planeta não. Acaba a humanidade e o planeta se recupera. Um dia a vida recomeça, talvez com humanos melhores.
— E quem produz mercadorias? Quem paga as contas?
O estranho explicou que com a população menor, menos bens eram necessários. A grana recuperada das palestras nunca realizadas, dos desvios das estatais, das rachadinhas, do crime organizado, da lavagem de dinheiro e todas as falcatruas é suficiente para ninguém trabalhar por quase um século. As hortas comunitárias da Marina produzem comida. O MST destruiu os cartórios, desapropriou as terras e distribuiu tudo.
— E quem é você? O que faz?
— Sou da resistência, pessoas contrárias ao sistema e que escaparam da esterilização. A gente se reúne escondido. Rola cerveja, cigarro, sexo, rock e filmes proibidos, como desfile de moda social, com as modelos vestidas dos pés à cabeça e rapazes de terno. Outro dia as mulheres foram à loucura com um vídeo de desfile militar, com soldados fardados e de quepe. Hoje vai passar um clássico: “O vestiário feminino”, com as atletas saindo do banho e se vestindo lentamente, colocando calcinha, sutiã, blusa de manga comprida e agasalho fechado até o pescoço. Não dá pra resistir. É melhor até que o documentário “Os ninjas e as mulheres de burca”, com a roupa cobrindo até o branco dos olhos. É pura excitação.
— Caraca, que doideira! Então agora é proibido usar roupa?
— É contra a moral e os costumes vigentes. Se te pegam, vai a julgamento na hora. Crimes leves como ouvir música boa ou assistir vídeos de “Ves-tease”, o oposto de strip-tease, dá 30 dias de solitária escutando Pablo Vittar. Crimes graves como ler, trabalhar ou estudar, é pena de morte na certa. O juiz joga a moeda. Deu cara, culpado, coroa, só amputa um dedo. Mas se você tiver acesso ao juiz Gilmar, em troca de grana ele faz a moeda cair em pé e aí você sai livre.
— E a igreja, não diz nada?
— Todas as religiões foram extintas e seus bens desapropriados.
— Não existe mais fé?
— As pessoas cultuam secretamente suas divindades. Uns adoram o profeta Mito e seus arcanjos Carlos, Flávio e Eduardo. Outros são fiéis ao deus Molusco e seus asseclas, as monjas Hoffman e Roussef e os pastores Delúbio e Dirceu. Deuses do passado como o Aiatolá Maluf e o babalorixá Sarney estão em baixa. Tem uns semi deuses menores, como a profeta Flordelis e o bispo Malafaia, mas eles têm poucos seguidores.
Donald abriu lentamente os olhos e, com a visão ainda embaçada, viu alguns rostos conhecidos.
— Querido, você está despertando. Que ótimo.
— Onde estou? O que aconteceu? Minha cabeça está girando. Eu estava num universo onde todos andavam nus, não tinha governo.
— Você estava delirando. Há cinco dias saiu para comprar DVDs piratas num camelô quando viu uma mulher sendo estuprada por um cara drogado e dois rapazes roubando um carro. Você tentou ligar para a polícia, mas duas gangues rivais que assaltavam um banco trocaram tiros e uma bala perdida te atingiu. O camelô matou os rapazes, pegou o carro roubado e te trouxe para cá. Não tinha vagas no Pronto Socorro mas ele subornou o plantonista e você ficou numa maca no corredor. Eu liguei para um vereador que ajeitou as coisas em troca de propina. O doutor disse que você acordaria zonzo por causa da anestesia, Propofol e Ozônio Retal. Mas vai passar. Agora deixa eu ligar para a Cintia da repartição para ela assinar o ponto por mim. Avisei teu chefe que você está internado.
— Quem bom que tudo voltou ao Velho Normal. Tenho de trabalhar na eleição para presidente do Brasil.
— Eleição? Presidente? Brasil? Em qual universo você pensa que está? Ai meu amor, seu caso é pior do que eu pensava.
Revisão ortográfica: Leilaine Nogueira