Quarentena na varanda

Domingo de sol, temperatura amena, isolamento social no sétimo mês. Festas e aglomerações continuam proibidas, mas não o almoço em família.

Laerte Temple

05.04.2021

A sacada de meu apartamento, no edifício Jatobá, não é grande o suficiente para homework, nem dispõe de vidraça e cortina para proteção de chuva e sol. Tem apenas uma pequena mesa, duas cadeiras e alguns vasos. Pego o jornal, caipirinha, amendoim e me sento para curtir a bela manhã.

Os moradores do King George Castle, do outro lado da rua, aproveitam o lindo dia nas amplas varandas gourmet, todas face norte, trajando shorts, camisetas e até biquínis. Do edifício Jatobá é impossível não ver e ouvir a ruidosa orgia gastro etílica.

Eu acho que cada imobiliária tem uma bússola diferente. Nos anúncios, noventa por cento dos imóveis são para o norte, mais favorável ao sol. Só não dizem qual das faces é voltada para o norte, nem a qual norte se referem: magnético, geográfico ou do croqui. Sabem que ninguém confere.

Mesmo em tempos de pandemia, status social e exibição de sinais de riqueza contam muito. O ser humano é vaidoso e morar em um apartamento no valorizado King George Castle massageia os egos mais exigentes.

Nas varandas gourmet, muito riso, música, conversas em voz alta, carvão queimando, whisky, vinho e cerveja. Tudo superlativo, só para chamar a atenção. Comportamento típico de galinha quando bota ovo e cacareja para anunciar. Mas chamar a atenção de quem? Ora, dos vizinhos do outro lado da rua! Ambos os prédios têm quinze andares e apartamentos com a mesma área, mas o edifício Jatobá, bem mais antigo, não tem varanda gourmet, nem nome chique. Para o síndico do King George Castle, é um prédio de apartamentos como outro qualquer. Uma habitação simples e sem glamour.

Segundo um morador, pós-graduado no Google, varanda gourmet é espaçosa, tem churrasqueira e pia. Apesar da fumaça e do cheiro de carvão que demora dias para desaparecer, varanda gourmet é chique, é sinônimo de status. Por isso o imóvel é muito mais caro. Não é para qualquer um. Soube que algumas pessoas se enterram em financiamento só por causa da tal varanda gourmet e da necessidade de exibir posição social. Compram com dinheiro que não têm, pouco usam, mas adoram esnobar o cunhado, o parente invejoso e o pessoal do edifício Jatobá. Varanda gourmet afaga o ego.

De repente, a tranquilidade daquela manhã é interrompida por uma viatura do Resgate, seguida por outra da PM, ambas com o giroflex piscando, indo e vindo, indo e vindo, até pararem em frente à portaria do King George Castle. Curiosidade de ambos os lados da rua, respiração contida, silêncio nas sacadas e nas varandas gourmet. Paramédicos e policiais são recebidos e guiados pelo seu Antônio, o zelador, e entram no King George. Interrompo a leitura do jornal e observo com atenção o suspense e o silêncio.

Passados uns vinte minutos, a maca sobre rodas reaparece, mas não é possível identificar o corpo coberto por lençol. Os moradores se entreolham e cochicham. Da varanda gourmet do apto 31, alguém gritou: seu Antônio, é Coronavírus? Apavorou geral. Garrafas e petiscos recolhidos, crianças para dentro, idosos se benzem, até surgir uma mulher de boné, cabisbaixa, escoltada por dois policiais e ocultando as algemas. Curiosidade no ar.

O zelador percebeu o clima e tentou tranquilizar os condôminos: calma gente, não é Covid não. É briga de casal. Dona Maria José esfaqueou seu Jaime no pescoço.

Alívio geral. Voltaram as bebidas, os risos, o som, os petiscos, os biquínis e demais símbolos de status nas varandas gourmet. Afinal, era uma linda manhã ensolarada.


Revisão ortográfica: Geyse Tavares


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