Politicamente incorreto

Aborda a questão do politicamente correto e como isso tira um pouco da criatividade e do humor.

Laerte Temple

25.04.2021
Ilustração: Caio Borges

Augusto Vilaça, o Guto, é um jovem autor e roteirista, promessa de renovação na dramaturgia brasileira. Seu mentor na faculdade conseguiu uma entrevista com o diretor do núcleo de novelas de uma importante emissora. Guto é sagaz, criativo, suas tramas são intensas, mas é preciso lapidar o vocabulário pouco ortodoxo, coisa que os revisores de conteúdo podem fazer.

— Bom dia meu jovem. Você me foi muito bem recomendado.

— Bom dia. É um sonho poder apresentar meu trabalho. Trouxe a sinopse para uma novela chocante.

— Muito bom, mas deixe-me explicar como trabalhamos aqui.

O diretor disse que a emissora estava atenta aos movimentos sociais. Por isso desenvolveram a IAPC – Inteligência Artificial Politicamente Correta. Explicou que é inaceitável ofender raças, religiões, nacionalidades, opções de gênero etc. Pediu ao Guto para se sentar diante do computador, pegar o microfone e ler pausadamente, frase por frase. Em uma fração de segundo o software IAPC faria os ajustes politicamente corretos. Guto ficou animado. Sentou-se, tomou água, pigarreou e começou a leitura.

Guto: Título: Barraco na perifa.

IAPC: Título: Conflito no extremo da cidade.

Guto parou, estranhou, não gostou do que ouviu, mas continuou.

Guto: Mano Charles, ex-gatuno da Favela do Buraco Quente, nas bandas da Freguesia do Ó, se amarrou na Sofia, mina riquinha da alta roda.

IAPC: Charles, jovem vulnerável e em situação de risco, ex-menor infrator residente na Comunidade do Vale Aquecido, nas imediações da Distinta Clientela da Quarta Vogal, apaixonou-se por garota de classe social mais favorecida

Guto: O mano é negão, beiçudo, pixaim, macho alfa, o garanhão das quebradas, fei que dói e a gata uma tchutchuca, branquela, peituda, cabelo água de salsicha e lataria meio enferrujada.

IAPC: O rapaz é afrodescendente, lábios grossos e salientes, cabelos com pequenos cachos, líder comunitário, sedutor, fraco de feição, e sua linda amada tem pele alva, seios fartos, cabelos ruivos e algumas sardas.

Guto: O coroa dela é bicheiro, gordo enorme, careca e quatro olho, caipira e narigudo, e é contra o rolo. Sem essa da cria ficando com piloto de van clandestina da perifa. Quer dar um perdido no mano antes que os dois transem e a mina embarrigue.

IAPC: O pai dela é corretor zoológico, obeso mórbido, deficiente visual e capilar, interiorano, nariz adunco, e é contra o relacionamento da filha com o condutor de transporte alternativo do extremo da cidade. Quer afastar o rapaz antes que o casal mantenha intercurso e a filha engravide.

Guto: O coroa aposta no Luiz, um arataca CDF e cheio da grana que tem um business de rango chinês com dois parça, um japa e um portuga.

IAPC: O pai prefere Luiz, de origem nordestina, muito estudioso, financeiramente bem sucedido, sócio em um estabelecimento de culinária oriental juntamente com um honorável senhor nipônico e um cidadão lusitano.

Guto: Os lovers foram na padoca. A dona tava com o camisão tipo toldo de pizzaria e farda do asilo prá véio mocorongo onde trampa de graça. Ele abocanhava uma Teta de Nega e ela uma fatia de Nega Maluca. Do lado deles rangavam um lixeiro tampinha e caolho, uma quenga feminazi, dona de bordel e um aleijado esquerdopata com buraco na dentadura. O arataca pintou no pedaço, viu a dupla dando uns amassos, ficou P da vida e arrepiou prá cima do mano. O barraco começou.

IAPC: Os namorados foram à panificadora. A proprietária vestia o jaleco com largas listas em tons de verde, uniforme da Casa para Idosos senis onde é voluntária. Ele saboreava uma Nhá Benta e ela uma fatia de torta Mulher Afrodescendente com Problemas Mentais. Ao lado deles lanchavam um trabalhador em coleta de resíduos, de baixa estatura e estrábico, uma empresária do sexo, dona de casa de tolerância e adepta de movimentos femininos radicais e um portador de necessidades especiais, socialista e com diastema acentuada. O rapaz nordestino chegou, viu o casal trocando carícias, encoleirou-se e foi às vias de fato. A luta corporal teve início.

Guto: O tempo fechou geral e o pau comeu solto. Um trombadinha que surrupiava a grana da mina do caixa sacou o trezoitão e mandou uns pipocos no arataca e nos lovers. Cancelou o CPF dos três.

IAPC: Tumulto generalizado e luta franca. Um menor infrator que praticava crime de roubo junto à operadora do caixa sacou o revólver calibre trinta e oito, disparou contra o nordestino e os namorados, matando os três.

— Guto, pode parar. Seu texto é intrigante e intenso. Podemos aproveitar, talvez numa mini série, mas teremos muito trabalho no IAPC. Retome a redação e conclua o enredo. O que acha?

— O que eu acho? Essa p@##@ de IAPC ferrou geral meu texto. Fui! Quero mais é que você se fo@#. Ah, desculpe, senhor. Preciso ser politicamente correto, certo?

— Seria bem melhor.

— O software IAPC sugeriu alterações que desfiguraram o conteúdo da minha obra. Vou-me embora! Desejo ardentemente que o senhor vá praticar coito consigo mesmo!


Revisão ortográfica: Geyse Tavares


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