CRÔNICAS ‣ humor

A família vive numa confortável residência, num condomínio de luxo em Campinas, São Paulo. Amâncio é escritor e palestrante requisitado, com diversas obras publicadas nas áreas de auto ajuda e coach. O endereço é conveniente devido às suas constantes viagens, dada à proximidade do aeroporto de Viracopos. Também agrada Alice, sua bela esposa, doze anos mais jovem, digital influencer e blogueira de moda. A pequena Thabata, filha do casal, com seis anos, desfruta do lazer que o condomínio oferece. O trabalho de Amâncio inclui palestras, treinamentos e lançamento de livros em todo o país. Alice trabalha em casa, no horário que bem entende. Sobra tempo para a filha, bem como yoga, personal trainer, hair stylist, meditação e xamanismo, culto que abraçou ainda solteira. Os fins de semana de Amâncio são para a filha e as noites de sábado, quando não está exausto, para sua Alicinha.

Num evento em Salvador, palestrou sobre “A importância da autoajuda no sucesso profissional”. Em seguida, moderou o painel “As forças ocultas e o seu destino”. Aquilo vai contra tudo o que acredita, mas o cliente pagou bem e ainda lhe deu um cachê extra para moderar o painel. O moderador escalado sofreu infarto fulminante na véspera e o painel tornou-se muito concorrido, justamente porque uma das participantes, Madame Cacilda, mãe de santo, taróloga e vidente, tinha previsto e alertado sobre o infarto.

Embora descrente, o tema aguçou a curiosidade de Amâncio. Mesmo sendo pego de surpresa para a função, os 20 anos na estrada em inúmeros congressos, entrevistas e debates pesaram a seu favor na condução da atividade. Oito videntes de diversas regiões do país debateram por mais de duas horas para uma plateia gigantesca e ultra concentrada.

Ao término, Amâncio despediu-se das participantes. A última, Madame Cacilda, ao segurar sua mão, olhou firme em seus olhos e disse:

— Você tem uma filha.

— Sim, Thabata, seis anos.

— Amanha, véspera do dia dos pais, fique o tempo todo com a menina. Não saia de casa entre 16 e 19 horas, não beba e não faça sexo.

— Posso perguntar o motivo?

— Faça isso ou a menina ficará órfã. Vejo infarto fulminante, na cama.

Madame Cacilda fez meia volta e desapareceu deixando o atônito Amâncio sem fôlego. Doutor Jorge, organizador do evento, presenciou a cena e sugeriu ao amigo acatar a orientação da famosa vidente.

Durante a viagem de volta, tentou ler, escrever e distrair-se com vídeos de bordo, mas as palavras de Madame Cacilda não saiam da memória. Ele não acredita nisso, mas e o infarto do moderador? Coincidência? Em casa, filha e esposa dormiam. Beijou ambas, tomou banho e deitou pensativo. Dormiu mal.

Sábado, após o almoço, levou Thabata ao shopping. Alicinha tinha sessão com Pai Ozires, seu Xamã. Leva o xamanismo a sério e o vínculo com o Pai Ozires é antigo, muito forte e propicia a força espiritual de que necessita. Amâncio respeita sua fé, mas não acredita nisso e nem conhece Pai Ozires.

A turma do tênis o chamou para um happy hour no fim de tarde, no bar do condomínio. Ele lembrou do alerta da Madame Cacilda, mas resolveu ir. Não acredita em videntes e, embora fora de casa entre 16 e 19 horas, estaria no condomínio. Era a mesma coisa. Deixou a menina brincando com a filha da vizinha e foi ao bar.

Fez questão de ficar até as 19 horas. Só então pegou uma cerveja e falou aos amigos sobre o estranho painel. Insistiu que essa coisa de vidente e esoterismo era pura bobagem. Dois vizinhos discordaram, mas ele riu, disse que esgotou o prazo, estava vivinho da silva e saiu caminhando. A uns 100 metros de casa, viu Alicinha entrar no carro com Thabata, apressada e mal arrumada. A vizinha e sua filha estavam na calçada.

— O que houve Vilma? Onde Alicinha foi, com tanta pressa?

— Algo grave aconteceu. O pai morreu há duas horas.

— Meu sogro morreu?

— Não. O Pai Ozires. Infarto fulminante, na cama de um motel.

Amâncio entrou, serviu-se de whisky e brindou Madame Cacilda. Depois coçou a cabeça, suspirou, conformou-se e disse a si mesmo: pai é quem cria!

Revisão ortográfica: Anne Preste