Canis Lupus


Os contos infantis, Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos, contados sob a ótica de um descendente dos lobos


Laerte Temple

26.09.2021

Olá. Sou um canis lupus, membro da família canidae, mais conhecido como lobo, ancestral dos fofinhos canis lupus familiaris, que muitos chamam pet. Quero aproveitar o espaço gentilmente cedido pelo editor chefe do jornal Cidadão e Repórter para apresentar minha versão de uma estória mal contada e que vem prejudicando a honra da nossa espécie há várias gerações.

Tudo começou no distante século XVII, quando uma mãe preguiçosa pediu à filha desocupada para levar um bolo e uma garrafa de vinho para uma vovó aproveitadora, que vivia à custa do Estado e explorava a boa vontade das pessoas. A mãe esbanjadora estava sem grana e mandou o bolo para a vovó para ver se a neta malandrinha surrupiava a velha.

A menina, vulgo Chapeuzinho Vermelho, frequentava a cracolândia do bosque e era bem conhecida no Conselho Tutelar e na delegacia, onde foi fichada várias vezes por vagabundagem. Ela era a típica “nem-nem”, ou seja, nem estudava, nem trabalhava. Sua avó, uma velha rabugenta e criadora de casos, fraudava a Previdência, as ONGs e os programas sociais do governo para aumentar sua renda. No caminho da casa da avó, Chapeuzinho resolveu conferir sua horta com cogumelos alucinógenos, habilmente disfarçada de pesquisa botânica. Encontrou um falso caçador, na verdade, um miliciano ligado ao narcotráfico, com fuzil contrabandeado e numeração raspada, sem licença de caça ou porte de arma. Ficaram conversando, fumando e, quando bateu a fome, devoraram o bolo, o vinho e muitos cogumelos.

De repente, trêbada, a jovem desocupada precisava inventar uma boa desculpa para se livrar da bronca da mãe. No caminho até a casa da avó, mataram meu tataravô Archibaldo, que caminhava pela floresta, e depois foram à delegacia registrar a ocorrência. Enrolaram o delegado jurando que o lobo comeu a vovó e o caçador precisou abrir sua barriga para salvar a velhota. Quase surda, míope e gagá, a vovó confirmou a versão na delegacia.

Presenciaram o depoimento fraudulento, um falsário francês de nome Charles Perrauld e os Irmãos Grimm. Os três, detidos por criar confusão num botequim, eram conhecidos espalhadores de fake news. Eles ouviram as mentiras do caçador e da Chapeuzinho sobre meu tataravô, adaptaram o depoimento e publicaram uma estória fantasiosa, disfarçada de conto infantil. Ficaram ricos e famosos.

Ora, só mesmo cheirando cola é possível imaginar uma vovó na barriga de um lobo. Além disso, humanos não integram a cadeia alimentar da família canidae, mas o sonolento delegado aceitou tudo sem apurar os fatos.

Foi assassinato a sangue-frio, isso sim, premeditado. A petiz e a idosa eram inimputáveis e o falso caçador se safou e ainda posou de herói. Meus parentes tentaram sua condenação por porte irregular de arma, assassinato e exercício ilegal da medicina veterinária, mas sem sucesso.

Já o tio Astolfo, mesmo sofrendo de asma crônica, foi acusado por três porquinhos membros do MPSC (Movimento dos Porcos Sem Chiqueiro), de ter derrubado suas casas com um sopro, como se isso fosse possível. Eles invadiram as terras do tio e construíram clandestinamente, sem projeto, sem alvará e sem pagamento de taxas. Como tem bicho maldoso neste mundo.

O processo do tataravô e a reintegração de posse do tio estão parados no STF (Supremo Tribunal da Floresta) há séculos. Alguém pediu vistas e não há prazo para devolução. Enquanto isso, os descendentes de Perrauld e dos irmãos Grimm recebem royalties às custas dessas fake news infantis. Como se isso não bastasse, o Banco Central do Brasil utilizou uma foto do primo Guará na nota de R$ 200,00 sem pagar um centavo de direito de imagem. É preciso restabelecer a verdade dos fatos, lavar a honra da espécie canis lupus e punir os responsáveis.


Revisão ortográfica: Anne Preste


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