A manifestação

Dois grupos opostos estão à beira do confronto em via pública. A mãe de dois filhos, um militante em cada grupo, intervém.


Laerte Temple

12.09.2021

A data foi marcada com muita antecedência pelos apoiadores do Jair e divulgada nas mídias sociais. Seria o maior público já registrado para um evento do gênero. Pensaram em chamar o pessoal do Guiness Book – o livro dos recordes – para registrar. A turma do Luiz Inácio não queria ficar para trás e prometeu muito barulho para a mesma data e hora.

A opinião pública está dividida e a imprensa não ajuda. Alguns veículos apoiam um dos lados e divulgam notícias falsas sobre o outro. O caso quase foi parar no judiciário, mas os juízes aproveitaram o feriadão para sumir.

A constituição garante o direito de ir e vir e a liberdade de manifestação, nos limites da lei, mas as autoridades estavam preocupadas com o possível confronto entre os grupos. Alguns policiais aderiram ao movimento.

Os especialistas em saúde pública temiam a aglomeração e o aumento do contágio. Não podendo proibir manifestações, recomendaram o uso de máscaras, já que o distanciamento seria impossível.

O bate-boca nos grupos das redes sociais intensificou-se. Amigos e parentes se distanciaram, namoros terminaram.

Ermengarda Josefa, diarista, batizada com o nome da filha do príncipe Rodolfo da Baviera, é mãe de dois rapazes, um da turma do Luiz Inácio e o outro seguidor do Jair. Sofre com as acaloradas discussões entre os filhos e sabe que nenhum deles cederá.

No dia dos eventos, Ermengarda ouviu no rádio que os dois grupos caminhavam pelas extremidades da avenida Paulista e se encontrariam no meio do caminho. Desligou o ferro de passar roupas, calçou as Havaianas, chamou as irmãs Sissi e Caroline, ambas com nome de princesa e problemas semelhantes, e rumaram para o Metrô.

Chegaram à estação Trianon-Masp quando os carros de som estavam a menos de cem metros um do outro, com música em alto volume e palavras de ordem. Em cada carro, filhos e sobrinhos da diarista lideravam apoiadores dos grupos opostos. Sissi e Caroline subiram nos carros e interromperam a música. Ermengarda, uma das mãos segurando o microfone e a outra a ameaçadora Havaiana, fez o mais importante discurso de sua vida.

Eu tive um sonho! Sonhei com o povo unido, com negros, brancos, ricos, pobres, homens, mulheres, todos respeitando a opção do outro e vivendo em harmonia. Por isso, seus fío dum Cabrunco – disse chacoalhando a Havaiana – ou vocês se entendem agorinha, ou a chinela vai piar!”

Silêncio na avenida. Os filhos de Ermengarda, Sissi e Caroline se aproximaram, dialogaram e após alguns minutos, anunciaram o acordo: a cada meia hora, a vontade de um grupo prevaleceria e o outro, democraticamente aceita. E vice-versa. Aplausos, abraços, choro e, após vitória no par ou impar, a Comitiva do Jair saiu na frente, com respeito e acompanhamento da turma do Cabaré do Luiz Inácio: meia hora de sertanejo, meia hora de forró. E vice-versa. O bailão na avenida seguiu sem problemas até o sol raiar.

Só mesmo dona Hermengarda, Sissi e Caroline para apaziguar os ânimos e unir o povo.


Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade exclusiva de seus autores e pode não ser necessariamente a opinião do Cidadão e Repórter.Sua publicação têm o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.