Rotina

por Malu de Alencar

05.05.20


A última vez que saí de casa foi no dia 15/03/20, para um encontro com amigas num almoço na casa de Bel Pereira, com Liana Bloisi, Cristiane e suas adoráveis filhas, Marilia e Lucas, filhos de Bel.

O almoço foi orquestrado por Vanessa, excelente cozinheira.

Não tínhamos notícias do que era, muitos boatos, muita informação desencontrada.

Imagina, isolamento, distanciamento social... que absurdo! Mas foi isso que aconteceu no dia seguinte. Me senti culpada por ter saído de casa, afinal, com uma filha grávida para ter seu primeiro filho, não poderia acompanhar o nascimento de Alice, minha netinha, muito menos me encontrar com Francisco e Maria, meus netinhos, que moram no mesmo prédio que eu.

Não sei o que aconteceu comigo, mas me senti uma morta-viva.

Parei. Não conseguia fazer nada, presa no meu canto, cheia de livros, pensei em ler, reler livros que guardo como relíquia.


Rever os depoimentos que gravei para o Museu de História Imagem e Som de Campos do Jordão, quando fui contratada para montar o MHIS que, desde 1971, tinha sido aprovado por lei do vereador Jesus de Carvalho, mas nunca efetivado.

Tive a honra de dar vida ao museu de Campos do Jordão, a cidade mais alta do Brasil!

Começava a leitura e não terminava. Pensei que estava ficando velha, afinal tenho 74 anos... Mas idade nunca foi um problema. Adoro ter vivido o que vivi, altos e baixos, lutas e vitórias, quantas pedras tirei do meu caminho!


Contudo, a única coisa que conseguia fazer era acordar e dizer: o que vou fazer? E nada fiz, a não ser cozinhar para os netinhos que moram no mesmo prédio. Parecia um zumbi.

Moro num prédio antigo e pequeno em Pinheiros, um bairro antigo que gosto muito.

Temos um esquema entre os moradores, um grupo de WhatsApp onde dividimos nossas preocupações, pedimos SOS, quem vai sair para compras e se alguém precisa de alguma coisa.

Somos poucos idosos, poucas crianças, poucos adolescentes, mais adultos na faixa dos 30 aos 50 anos... professores universitários, músicos, publicitários, empreendedores da área cultural, jornalistas, economistas, cineastas, advogados...

Na minha perdida, resolvi fazer máscaras de pano para doar aos moradores, mas só sei costurar a mão, como antes da máquina de costura. Fiz e doei para quem aceitou. Fiz também para o pessoal de rua, catadores, garis, os pedreiros que estavam trabalhando numa reforma e para meu amigo Luiz, o anjo da guarda do nosso prédio.

Sem o Luiz nada aconteceria, ele é zelador há mais de 25 anos.

Desde 15 de março o único trajeto que fiz foi subir a escada do térreo para o primeiro andar onde Bianca mora com Francisco e Maria. São exatos 17 degraus, ida e volta. Faço isso algumas vezes por dia. Mas não tem abraços, muito menos beijos.

Francisco completou 7 anos no dia 4 de abril, sem festa, sem a presença do pai, dos tios, da avó paterna, dos amigos, uma comemoração virtual. Presentes: Bianca, a mãe, Maria, a irmã e eu, a avó materna.

Dia 5 de abril, às 9h15, nascia Alice, filha de Vicky e João. Tampouco pudemos estar presentes, nem os avós paternos e nem a ala materna.

Como uma criança nasce e não tem um parente para dar apoio? Mãe, avós, irmã, irmão, tio, tia.... uma amiga querida?

Mas foi isso que aconteceu. Alice nasceu sem a presença de nenhum parente materno ou paterno.

Não foi fácil para esta avó, eu que adoro meus netos.

Fiz quarentena para poder encontrar Alice. Segui todos os protocolos e dia 24 de abril fui conhecer minha netinha.

Não dá para descrever a emoção, você ver sua netinha e não poder abraçar, segurar....

Mas assim tem que ser e assim será.

Agradeci estar junto, ver, respirar o mesmo ar, participar do mesmo ambiente e ouvir seu choro, acompanhar seu olhar...

Quem diria que seria esse encontro que me libertaria do que me oprimia?

Hoje, descobri que tinha que viver meu silêncio, ouvir meu coração que chorava a saudade dos meus pais, meus irmãos, minha história familiar, meus amigos queridos, dos amores, com os quais compartilhei meus sonhos, dos parceiros de trabalho, do que construí e desconstruí, do que ainda posso fazer.

Fazer parte de um grupo de trabalho que tem projetos, tem sonhos, tem uma proposta e existe há mais de um ano, é um presente dos deuses e tenho que agradecer a cada um de vocês, por ordem alfabética: Bernadete Siqueira, Eduardo Luiz Mendes, João Francisco Aranha, Myrian Becker e Sergio Cahen. Nossos colaboradores: Appio Ribeiro, Cleo Brito, Eugênia Pickina, Lala Évan, Maitê Ribeiro, Vera Bifulco e outros que virão fazer parte desse sonho.

Não imaginei que a quarentena que me bloqueou, hoje me libertou.

Não sei o que vai acontecer com essa quarentena, também não quero saber agora.

Vou respeitar o isolamento, vou agradecer estar viva e voltar a escrever, para dizer a todos os entes queridos: filhos, netos, genros e nora, irmão, sobrinhos, parceiros de trabalho, amigos, que viver é uma dádiva que vale a pena curtir...


PS:Faz dias que tento escrever e não consigo. Hoje me libertei. Escrevi e não reli.Um abraço a todos.Foi tudo virtual.

Fotos internas da matéria concedidas ao site Cidadão e Repórter, pela colunista Malu de Alencar
Revisão: Maitê Ribeiro