Terror e Pânico na Pio XI - parte 2 - O Pânico

por Appio Ribeiro

02.12.2020

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.

Na primeira parte deste “Terror e Pânico”, contei fatos ocorridos na Pio XI. Conto agora outro fato verdadeiro, real porque aconteceu. Mas surreal, pois não foi tão material.

Nos anos cinquenta contei que a gente não tinha tanto medo de vivo quanto de morto. Eram superstições, mitos, lendas de um passado longínquo em termos de anos, mas ainda próximos em termos de recordações sociais. Isso era a cultura da época. A TV ainda não havia chegado. Mas, passados mais de sessenta anos, ainda me lembro de um filme que vi, quando tinha uns doze anos – evidente que no cinema e com meus pais. Chamava-se “Alameda da Saudade 113”. Um filme nacional. Não me lembro dos atores. Lembro da história: um jovem se apaixona por uma moça, se enamora por ela (naquele tempo o namoro era platônico), encontram-se algumas vezes, sempre à noite, e ele a pede em casamento. Ela revela ser impossível, e não o encontra mais. Ele não se conforma, pois sentia que ambos estavam apaixonados. Desespera-se e passa a procurá-la. Mas ninguém a conhecia. Por fim, ele obtém um endereço: Alameda da Saudade, 113 (que dá título ao filme). Procura, procura e, por fim encontra: a Alameda da Saudade ficava dentro do cemitério da cidade, e o número 113, era o endereço de uma tumba. A dela. Sobre o granito preto ele a vê, mas naquela foto feita em porcelana que as tumbas ostentavam. Morrera havia anos. É evidente que a sessão de cinema foi seguida de algumas “soirées” sem dormir.

Mas o medo de mortos, de fantasmas e coisas assim era até de certa diversão entre as crianças, masoquistas certamente. Há alguns dias ganhei um livro *, de estudo histórico-literário da cidade de São Paulo, e lá vejo reproduzida uma das histórias que meu pai nos contava naquelas noites, que seriam hoje elegante e academicamente chamadas de “mitos urbanos”. Numa daquelas sessões sádico-noturnas, para deleite da criançada, meu pai contava da existência de um homem, na cidade de São Paulo, que em noites de lua cheia se transformava em lobisomem e, assim transformado, tinha preferência gastronômica por criancinhas.

Sim, diziam que quando ele aparecia, desaparecia alguma criancinha, algum nenê. Todos tinham medo. Principalmente as mães, com filhos pequenos. Certa noite, de Lua Cheia, uma mãe ouve um barulho estranho em sua casa. Vê um cachorro cinza, enorme, com olhos vermelhos, que se aproximava do berço do seu nenê. Ela corre e evita que o cão machuque a criança, puxando-a para o alto. E o cão gigantesco consegue morder apenas o cobertorzinho do nenê. Ela salva o filho. E o cão some noite adentro.

No dia seguinte, ela acorda o marido que trabalhava à noite para lhe contar. Ele ouve a história e ri. E ela vê, entre os dentes do marido, pedacinhos de fios arrancados do cobertorzinho do seu nenê.

A gente sabia que era história, mas morria de medo. Criança é criança.

Mas, quando a gente fica adulto as coisas mudam. Por exemplo, mudaram comigo. Era o ano de 1963. Eu estava já com 17 anos. Trabalhava, estudava. E como era um usuário de ônibus, tinha a mania de aproveitar essas horas de transporte para ler. Naquela época eram comuns os “livros de bolso”, pequenos, mal encadernados, mas baratos. Certa noite, eu tomei um ônibus no centro da cidade para ir para casa. Ele passava pela Pio XI. O destino dele era “Boaçava”, lugar que nunca soube onde era. Até hoje. Só sabia que o itinerário subia a Pio XI, onde eu descia e junto ao Colégio dos Padres, o ônibus virava à direita e seguia pela “Estrada das Boiadas”, que eu sabia ir até o Bairro de Pinheiros.

Não sei o nome atual das ruas e até hoje não sei onde fica Boaçava. Mas sei que o ônibus em que eu estava passava pelo Cemitério da Lapa. Por quê? Porque naquela noite, lendo o “FBI” ou “Shell Scott” ou outro qualquer, dormi profundamente. E quando acordei, tinha passado do meu ponto. Sobressaltado, pedi e o motorista bonzinho até parou fora do ponto pra atender meu pedido para descer. Ainda zonzo desci. Desci sem saber direito onde estava. E aí me dei conta: eu estava ao lado do paredão do Cemitério.

Faltava pouco para a meia noite. E meia noite, nos contos de terror que eu lia, era a hora “fatídica”! Mas eu era já grandinho, um homem, ora bolas! Mas, naquela hora, não me senti tão adulto assim. Na calçada, via o interminável muro do cemitério. Não tinha jeito. Àquela hora não havia mais ônibus. E ficar parado ali era o que eu não queria fazer. À minha direita, somente aquele paredão a me separar, por apenas poucos metros, de dezenas de corpos, de centenas, de milhares deles. Essa ideia, naquela agora, confesso começou a me perturbar. Mortos. Almas. Penadas ou conformadas...

A noite era escura. Nem lembro se tinha postes com luz. Se havia, eram insuficientes para iluminar minha coragem. Eu só via aquele paredão branco, sujo, interminável. E de algumas árvores de dentro do cemitério saiam alguns galhos sobre o muro. A essa altura, eu já os imaginava ou os via como braços, ressecados, descarnados, querendo escapar da eterna desgraça.

Mas eu já era homem, pô! Que besteira! “Isso tudo é imaginação. E a imaginação constrói a realidade”, repetia para mim e tentava me convencer. Eu era um ser racional, afinal. Pelo menos achava que era. E fui andando. Juro que não corri. Apenas um passo de marcha. Marcha batida. Mas também não parei nem por um segundo. Andava e pensava. “Medo é besteira. Não há nada pra temer. Não vai acontecer nada, não vou ver nada.”

E o meu racional, lembrando as explicações do meu pai, dizia pra mim: “a única coisa que eu posso ver é uma luz, uma chama, como um fogo”. E procurava pensar assim porque eu sabia do fogo fátuo, um fenômeno químico, que não tem nada de fantasma. Mas, ao mesmo tempo me dizia: “mas esses gases saem por debaixo dos túmulos... e não na rua... se surgir na rua não é química...”

Não corri, mas sentia meu coração batendo mais forte. Mesmo me convencendo a não ter medo apertei o passo. E enfim, e muito enfim, consegui seguir pela rua e o muro do cemitério ficou para trás. E com ele, os cadáveres e os fantasmas.

Mas essa caminhada à meia noite por rua que mal conhecia, não termina aí. Os cadáveres ficaram para trás, mas os fantasmas...

“Ora, fantasmas, isso é coisa para criança!”, fui me convencendo, e andando. Recordo que a rua ficou mais clara, acho até que iluminada. Pelos postes de luz ou pelo luar. Sei disso porque, aquela tranquilidade que consegui me impor, de repente parou. Para chegar até a Rua Pio XI tinha que passar por um trecho, totalmente escuro. Enormes árvores, eucaliptos — comuns naquela região — estavam de ambos os lados da rua. Era uma área como uma praça (mato), com muitas árvores. E suas copas se fechavam transformando a rua num túnel.

O maldito medo voltou. “O que faço?”. O silêncio absoluto, o farfalhar dos ramos altos era o único ruído. Lúgubre. Mais adiante, à direita, aquela sinistra construção de tijolos: o colégio dos padres. Pensei nos padres, no meu tempo de igreja, e me veio à lembrança aquela imagem da estátua de Cristo morto, ensanguentado, que ficava abaixo de um altar lateral, num caixão de vidro, na Igreja N.S. da Lapa. A imagem me deu mais medo, mas talvez a fé me desse coragem. Ou a falta de alternativa.

Aí, eu corri. Corri para passar aquele trecho o mais depressa possível. Não sei se fechei os olhos ou se estava tão escuro. Sei lá.

Quando cheguei à Pio XI iluminada, foi como ter saído de um conto de terror e ido para um conto de fadas. Ufa! Passei. Superei. Sobrevivi. Acho que me ufanei. E me convenci de que não era tudo questão de imaginação. Nada daquilo – mortos, fantasmas, almas - existia. Era tudo imaginação. Cheguei a rir e acho que até assobiar enquanto descia a Pio XI, rindo de mim mesmo, pela situação ridícula em que eu me encontrara. Pura besteira.

E, muito mais tranquilo, fui descendo pela calçada da direita de quem desce a rua, e quando já estava pelo terreno que dava fundo para a minha casa, e passando por uma casa, que pelo que me lembro era térrea, bege, com uma cobertura na porta da entrada e janela ao lado, ao passar por ela, tive a impressão de ter visto algo. Algo como um vulto.

“Idiota! Teu medo voltou, seu idiota!” eu me falei. Seguramente era o medo e a tensão que eu passara é que estava me fazendo achar que eu vira algo.

Você está imaginando coisas, seu idiota! Não tem nada aí.” Continuei andando, e acho até que reduzi o passo. E andando ainda, resolvi virar meu rosto para a minha direita, em direção ao jardim da casa. E vi com o rabo dos olhos.

Vi o que me pareceu ser um homem, de roupa preta, dentro do jardim da casa, à direita de quem a olha. Gelei, porque era muito alto.

Mas, num fôlego de coragem, pra provar que era imaginação, que eu era homem, resolvi parar, dizendo pra mim mesmo: “Você vai ver que é imaginação.”

Parei, me virei para encarar e... me arrepiei! Ali, parado na calçada, vi com toda nitidez um homem, em pé, de terno preto, fosco como de sarja, de camisa preta, com mais de quatro metros de altura, altura que atingia o telhado da casa, e virado para mim, como se me encarasse. Com um detalhe: aquela figura não tinha cabeça.

Mesmo me derretendo de susto, o racional me fez olhar novamente. Olhei e encarei. E lá estava àquela figura, toda de preto, imóvel, sem cabeça, mas me dando a sensação que me encarava. Foram três as vezes que olhei. E as três vezes eu o vi nitidamente. Senti meus cabelos quererem sair do couro cabeludo. Arrepio e tremedeira percorreram meu corpo todo. Não houve uma quarta vez. Quase desabei.

Corri. Corri como nunca. Meus passos pareciam nem tocar o chão. Meu pai sempre me esperava para me abrir a porta. Naquela noite não bati na porta, eu a esmurrei. Gritava e chorava quando meu pai, assustado, mal abriu a porta e eu me agarrei a ele. Desesperado, humilhado, e outros... ados. Foram vários minutos de abraços, água com açúcar, palavras de conforto até eu me acalmar, voltar à cor, parar de tremer e conseguir contar o que acontecera.

Mas criei coragem. Após tantas décadas, criei coragem para lhes contar este ocorrido, porque este fato não me enobrece nem um pouco.

Por muito tempo evitei passar por ali e mesmo olhar para aquela ou aquelas casas. E sabem por que esta é a Parte 2 do Terror e Pânico na Pio XI?

Porque, por coincidência ou não, aquela casa, em que eu acho que vi aquela figura, uma década depois, aparece na imprensa como a casa em que ocorreu a tal “Chacina da Lapa”, comentada na Parte 1.

“No creo en brujas, pero que las hay, las hay”.

(*) Milano, Miguel, Os fantasmas da São Paulo Antiga, Editora da Unesp, ISBN 978-85-393-0372-4.


Revisão: Maitê Ribeiro

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