Terror e Pânico na Pio XI - parte 1 - O Terror

por Appio Ribeiro

03.11.2020

Rua Pio XI, 767 - Alto da Lapa, São Paulo, SP

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.)

Nos anos cinqüenta, o Alto da Lapa ou, como chamavam, a Lapa City era um bairro ainda novo, em formação. Nem todos os terrenos tinham casas e, com suas frentes largas e sem muros, expunham a sua mata. Nem todas as ruas tinham calçamento, nem mesmo calçadas. Algumas, como a minha quando mudei, nem água encanada ainda tinha. E a iluminação pública além de ser precária era ausente em muitas ruas. Você pode imaginar como era durante o dia: muito agradável, com ares de fazenda, cheiro de eucaliptos no ar. Mas, à noite, as ruas eram escuras, e nas poucas iluminadas, os postes eram distantes e as lâmpadas fracas e amareladas. E com o constante sereno (a famosa garoa paulistana), formava-se uma imagem que eu achava bonita: o halo que coroava cada lâmpada. Em noites de Lua Nova, sem nenhum luar, a gente via milhões de estrelas. E quase todas as casas mantinham acesas pela noite adentro as lâmpadas de seus terraços. Uma silenciosa solidariedade entre vizinhos.

Mas o escuro, naquela época (anos 50) também era sinal de medo. Usava-se o medo até como método didático: “não faça isso senão te ponho no escuro!”, “entra para dentro porque já está escurecendo”. Ensinavam pondo medo nas crianças, medo do escuro com o bicho papão e outros fantasmas. Aliás, a gente tinha medo era dos mortos e não dos vivos como hoje em dia. Quando criança eu tinha a minha lógica: “um vivo pode-se matar e aí ele não pode fazer mais mal, mas um morto não se pode matar e não se pode livrar dele. Cruz, credo!”. Medo de vivo era raro porque não se tinha notícia de assaltantes, muito menos de assassinatos, como agora. Tinha até assaltantes românticos. Meu pai contava de um tal de Meneghetti, um imigrante italiano, que roubava as casas só dos mais ricos, nunca cometera violência alguma, e zombava da policia sumindo, tamanha a sua facilidade que subia paredes e pular telhados. Era apelidado por “gato de telhado”, e pela admiração que a população tinha por ele, era um “Houdini carcamano”. Naquela época, crimes como o “Crime da Mala”, eram comentados por décadas – até por falta de novidades, como o então recente “Crime do Sacomã”. A quantidade de crimes noticiados hoje num único dia levava vários anos para ocorrer.

Toda noite meu pai ia até o ponto de ônibus na Pio XI, que até ali era iluminada, buscar minha irmã que voltava da escola por volta das 22h30min h (naquela época era muito tarde). Certa noite, ele brincava comigo de bandido e mocinho dentro de casa quando o cuco bateu dez e meia. E colocou o casaco e foi buscar minha Irma. Ainda na Rua Pirai, indo pela calçada ele viu diante o vulto de dois homens vindo em sua direção. Ficou alerta. Viu que um deles veio para a mesma calçada. Meu pai então foi andar no meio da rua. E o homem veio para o meio da rua em direção a ele. O outro continuava na calçada, como se esgueirando.

Quando ele voltou com a minha irmã, ambos estavam rindo à beça. Ficamos curiosos com aquela atitude estranha e ele contou.

-“O sujeito veio em minha direção e eu continuei no mesmo passo e direção. Mas eu percebi a intenção deles: um só se mostrava e o outro se escondia. Quando aquele que vinha pelo meio da rua chegou perto de mim, eu parei e ele me disse: “tem fogo?”

-“E aí, Pai?”

-“Aí, ele me disse: “Lembra que agente estava brincando de bang-bang quando fui buscar sua irmã? Então, do bolso da calça eu tirei aquele revolver de brinquedo, enfiei na cara do sujeito e disse: “Serve este? Nunca vi alguém correndo tanto e tão rápido! Sumiram.”

Meu Pai, que eu via como alguém que não tinha medo, ficou mais herói, e com muito humor.

Assim era o terror naquela época, e assim ficou por década. Até que nos anos setenta, naquele lugar tranquilo em que nada de anormal acontecia, aconteceu! E foi na Pio XI, bem atrás da minha casa, que começara o terror.

Naquela rua estritamente residencial, na residência de número setecentos e sessenta e sete, acontecia algo que ninguém imaginava. Soube depois, pelos jornais, que ali se reuniam pessoas dirigentes de organização política, lideres integrantes do Comitê Executivo do Partido Comunista do Brasil, que a poucos metros da minha casa, vinham realizando reuniões e organizando grupos táticos armados, para combater o regime então vigente no país, conforme foi noticiado na época. Os arquivos dos jornais da época podem ser consultados, mas hoje isso está registrado no Memorial da Resistência de São Paulo, sob a foto que ilustra esta crônica, o seguinte:

No número 767 da Rua Pio XI, no bairro da Lapa, uma casa insuspeita era utilizada por membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para reuniões clandestinas. Em dezembro de 1976, o Comitê Central estava reunido no local para realizar um balanço político da recém-derrotada Guerrilha do Araguaia, movimento de resistência armada organizado pelo partido no sul do Pará. Na madrugada do dia 16, após o fim da reunião, a residência foi cercada e metralhada pela polícia. Os militantes que já haviam deixado o local foram sucessivamente presos e encaminhados ao DOI-Codi/SP. Dois dos dirigentes que ainda se encontravam na casa no momento da invasão, Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, morreram na hora, sem qualquer direito de defesa. Entre os militantes presos, João Batista Drummond foi morto sob torturas. O episódio ficou conhecido como o Massacre da Lapa. Anos mais tarde, a construção original foi demolida, dando lugar a uma clínica médica que lá funciona até os dias de hoje.

A partir daí, toda vez que eu lia ou ouvia falar de atos de terrorismo – que passaram a ser frequentes e hoje fazem parte da criminalidade do nosso cotidiano – eu me lembrava daquele lugar tranquilo e pacífico, por onde tanto andei. E eu passei a andar com desconfiança pela frente de quartéis e agências de bancos que ficavam pelas ruas que percorria e agora com certo medo dos “vivos”.

Que saudade do tempo em que o Terror, pra mim fora só nome de Gibi (“Terror Negro”) e programa da TV preto e branco (“Teatro de Terror”). Mas, saibam: a PIO XI ainda foi palco de cena não de terror, mas de puro pavor, no seu mais alto grau. E eu, só eu, e mais ninguém, pode lhes contar. Mas isso, você só vai saber se ler na próxima publicação. Até lá.



Revisão: Maitê Ribeiro

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