São Paulo conta sua história: Vila Carrão

por Malu de Alencar

18.02.2020

As origens

Caminhar pelas ruas planas da Vila Carrão, na zona leste de São Paulo, é uma atividade bem prazerosa. O bairro, todo planejado e arborizado, foi criado em 23 de setembro de 1917. Surgiu de uma extensa plantação de uvas, de propriedade do Conselheiro João da Silva Carrão, cuja residência ficava às margens do rio Aricanduva, nas imediações da atual Rua Baquiá.

O bairro hoje faz parte do distrito Carrão – que compreende também o Carrãozinho, Chácara Califórnia, Chácara Santo Antonio, Chácara Santo Estevão, Vila Nova Manchester e Vila Santa Isabel.

O Cons. Carrão, como era conhecido, foi o 32º presidente da província de São Paulo, nomeado em 1865. Em suas terras ele produzia um vinho excelente, inclusive apreciado pelo imperador D. Pedro II, que esteve na Chácara Carrão, como era chamada a residência do Conselheiro. O ilustre visitante veio de trem até a Penha e dali pegou um barco no rio Aricanduva. Bons tempos aqueles em que os rios eram cristalinos e perfeitamente navegáveis! Os olhos do régio passageiro com certeza se encantaram com a visão das matas de eucaliptos, chácaras de árvores frutíferas e a vasta fazenda de uvas onde se hospedaria em breve.

Com a morte do Conselheiro, em 1888, e após vários proprietários, houve o loteamento realizado pelo dentista João Gomes Barreto, e executado pelo engenheiro Henrique Pegado, despertando o interesse de muitas famílias pela região. Dentre essas famílias estão a de Renato Rinaldi, a quem foi vendido o primeiro lote, por 300 réis; João Vieira Priosti e uma alemã chamada Winifred. Tais famílias, junto com os parentes do dentista Barreto, deram nome a diversas ruas, ficando para a história do bairro.

Uma bem-humorada estratégia de marketing impulsionou as vendas, e mostra nas entrelinhas quão remotas são as implicâncias com a sogra, como se pode conferir no anúncio abaixo, que o dentista Barreto publicou em um jornal.

Busto do Cons. Carrão, na Praça XV de Outubro

AOS QUE DESEJAM LIVRAR-SE DA SOGRA

Dizem sempre quando me encontram, que estou gordo, alegre, remoçado e até… bonito (isto é chalaça¹). Eu que sempre fui franzino só posso attribuir esse progresso a uma coisa: mudança de ares, o que faço todos os dias, pois trabalho na cidade e moro na salubérrima² Villa Carrão. Tão benéfico é este local, que fica aquém da Penha, que não há “sogra” que goste delle, por ser em os seus ares puros demais. Aconselho sempre a esses amigos que façam o mesmo comprando um terreno nessa villa, é tão barato! Apenas 150$000 um lote de 10 x 50!! Vinde vêr o mappa e escripturas à rua Barão de Itapetininga, 41-A, sobrado, Tel 4498. - Dentista Barreto."

1 - Chalaça, substantivo feminino - dito ou feito espirituoso, zombeteiro; escárnio, gracejo, motejo. - Dito ou gracejo de mau gosto; chocarrice.

2 - Salubérrima, adjetivo - superlativo absoluto sintético de salubre, saudável.

Parece que funcionou muito bem. O bairro cresceu, construções se multiplicaram e muitas famílias se mudaram em busca dos ares “salubérrimos” (saudáveis) do anúncio sobre a Vila Carrão. Também logo vieram imigrantes portugueses, italianos, espanhóis, japoneses e árabes, com sua bagagem cultural, presentes até hoje no comércio e nas festas. Destas se destacam a Festa do Divino Espírito Santo, realizada pela Casa de Açores, e o Okinawa Festival, da Comunidade de Okinawa, ambas inseridas no calendário oficial de eventos do bairro.

Era uma vez uma trilha

A linha do tempo da Vila Carrão remonta aos índios da aldeia de Piratininga, que fizeram uma trilha para conduzi-los ao local que hoje compreende o Itaim Paulista, Vila Curuçá e Jardim Santa Helena, ainda no séc. XVI. Por essa mesma trilha caminharam os bandeirantes que desbravavam as terras em busca do cobiçado ouro e para escravizar os índios.

Alguns historiadores afirmam que a região fazia parte da sesmaria de João Ramalho, considerado o patriarca dos mamelucos – por sua vasta descendência formada pelo cruzamento de branco com índio –, pai dos paulistas e “fundador da paulistanidade”. Segundo registros históricos, constam de sua descendência a rainha Silvia, da Suécia e a escritora Lygia Fagundes Telles. Nada mal para um aventureiro português apaixonado pelos índios, criticado por sua conduta imoral pelos jesuítas, mas aceito por sua combatividade na defesa da Vila de São Paulo, o embrião da nossa metrópole.

Outros defendem que a região fora outorgada por Martim Afonso de Sousa a Brás Cubas, um fidalgo e desbravador português que se tornaria governador da capitania de São Vicente, fundador de Santos e de Mogi das Cruzes.

Fato curioso é que Braz Cubas, homem arrojado e que muito construiu por onde passava, também estabeleceu vinhedos na região do Tatuapé, em pleno planalto de Piratininga, por volta de 1551. Isso é uma descoberta incrível: o Tatuapé seria mais antigo do que a instalação do Pátio do Colégio, ou seja, da fundação da própria São Paulo.

Voltemos agora ao início do séc. XX. A expansão da Vila Carrão seguiu em ritmo promissor. A av. Cons. Carrão, que começou como tímida Estrada de Itaquera e era apenas um atalho para bois – com a função de transportar lenha para as padarias do Belém e do Brás, e capim para a fabricação de colchões –, passou a encher-se de moradias. Tal crescimento ganhou fôlego com a vinda do Comendador Guilherme Giorgi, que havia criado, em 1906, o embrião de um complexo industrial, o cotonifício que leva o seu nome. Em meados de 1930, instalou-se na Vila Carrão e ali construiu uma série de casas para os trabalhadores, pois tinha uma visão empresarial e social diferenciada para a época: achava que os funcionários deveriam residir perto do trabalho para evitar horas perdidas em transportes, que eram ainda mais precários. Mais tarde, com a extinção do cotonifício, essas casas foram demolidas e se transformaram no Jardim Têxtil, com residências de alto padrão – também pertencente ao Distrito do Carrão.

O bairro hoje

Esse breve relato da história da Vila Carrão revela muitos fatos interessantes sobre o passado. Mas voltemos ao presente. O fato é que a Vila Carrão cresceu – hoje conta com mais de 70.000 habitantes (2010), numa área de 7,5 km2. Possui um baixo índice de violência, bom número de bancos e empreendimentos comerciais e imobiliários, boas escolas públicas e particulares, além de ser bem servida por transportes públicos.

Além disso, existe o projeto de uma nova linha de metrô, o que deve desafogar o trânsito e facilitar o deslocamento dos moradores.

Por ser um bairro plano, a Vila Carrão também atrai usuários de bicicleta, seja como meio de transporte ou apenas para passear. O bairro possui uma ciclovia de cerca de 2,2 km de extensão, com início na rua Atucuri e término na rua Taubaté.

Quando nos dispomos a contar a história de um local fazemos uma incursão ao passado, restaurando as tramas que o compõem, as pessoas e atividades que vieram antes. Figuras ocultas são reveladas, múltiplos caminhos são reabertos, mostrando personagens desconhecidos que podem ter a ver conosco hoje – ao menos nos nomes das ruas do bairro onde moramos. Reconstruir as teias da experiência cotidiana dos que nos precederam – ainda que modesta se comparada aos fatos marcantes da História universal –, é revelar um pouco do que se passou antes de nós para entendermos a atual realidade. Essa função da História cabe em todo e qualquer recorte, seja de um pequeno, mas próspero bairro ou de uma grande nação.

Como não amar a Vila Carrão?

• É um dos bairros que mais crescem na zona leste;

• Superresidencial, com ruas planas e arborizadas;

• Fica a 5 min do Shopping Anália Franco (o melhor da zona leste);

• Próximo ao Parque Ceret, um dos melhores da região;

• Possui o Centro Esportivo Vila Manchester, que oferece muitos cursos e atividades esportivas;

• Fácil acesso para quem precisa ir para Guarulhos e para o aeroporto;

• A expansão da linha 2 — Verde do metrô (Vila Prudente — Dutra) dará ao bairro duas novas estações.


Área: 7,5 km²

População: (68°) 71.363 hab. (2010)

Densidade: 95,15 hab/ha

Renda média: R$ 2.948,70

IDH: 0,886 - elevado (30°)

Festival de Okinawa

Okinawa Festival 2019

Associação Okinawa de Vila Carrão – São Paulo-SP

Fundada em 1956, a Associação Okinawa de Vila Carrão – AOVC é, uma das maiores associações filiadas a Associação Okinawa Kenjin do Brasil, com mais de 450 famílias associadas.

Na Associação Okinawa de Vila Carrão são realizadas atividades esportivas, culturais e artísticas, como o Okinawa Buyo (dança de Okinawa), Minyô (música popular okinawana) e Geki (apresentação teatral). A associação promove inúmeros eventos e atividades para resgatar e transmitir o patrimônio cultural de Okinawa, principalmente às novas gerações.

Anualmente, a Associação Okinawa de Vila Carrão realiza o Okinawa Festival, evento já tradicional na comunidade e que tem a finalidade de divulgar a cultura, a arte, a dança, a música, a culinária e os costumes da Ilha de Okinawa, não só para a colônia, mas para toda a população.

Depoimento

Malu de Alencar conta como conheceu a Vila Carrão:

Conheci Vila Carrão recentemente, graças ao convite de duas amigas, Maitê Ribeiro e Tereza Brocardo, antigas moradoras do bairro. O encontro foi na Biblioteca Lenyra Fraccaroli, situada numa área muito arborizada, com espaços para brincar, correr e ponto de encontro de crianças, jovens, estudantes, adultos e idosos. Várias atividades são ali praticadas. A sensação foi de estar numa cidade tranquila do interior do estado.

Fiquei impressionada com o envolvimento da comunidade em assuntos do bairro, as mulheres são bastante ativas e discutem os problemas e buscam soluções, criam eventos para ajudar entidades carentes da região e para se divertirem.

Fomos almoçar num restaurante por quilo comandado por uma família de japoneses. Fiquei curiosa em saber a origem de tantos japoneses oriundos da Ilha de Okinawa ali na região, pois não estávamos na Liberdade, mas num bairro da zona leste, cuja população normalmente é formada por italianos, portugueses, espanhóis e nordestinos.

Para contar a história do bairro, nada melhor que o depoimento de quem nasceu e ali passou grande parte de sua vida.

Com vocês, Maitê Ribeiro, moradora de Vila Carrão e nossa convidada para contar a história do bairro onde nasceu:

Foi ao raiar de um dia de outono que eu nasci na casinha humilde de uma travessa da rua Dentista Barreto, na Vila Carrão, nos idos de 1950. Nessa mesma casa vivi até os 4 anos, quando então fomos morar em Orlândia, interior de São Paulo – meus pais e os três filhos –, onde passei a infância e parte da adolescência.

Que estranhos desígnios me trouxeram de volta, aos 16 anos, à casinha humilde da Vila Carrão, muito danificada pelos anos de aluguel?

Era uma fria quinta-feira de maio, com direito à celebrada garoa que traduzia São Paulo naquela época (hoje bem menos).

“Ê, ê, ê, ê, São Paulo / São Paulo da garoa / São Paulo que terra boa...”

Na rua Dentista Barreto acontecia (como até hoje) a feira livre e seu costumeiro desfile de pessoas com suas sacolas e carrinhos, encarando com bom humor (ou não) os gritos dos feirantes e suas tiradas engraçadas:

“Moça bonita não paga! (Mas também não leva).”

“Mas nem de graça! Mas nem de graça! Mas nem de graça... o povo quer levar!”

“Vamos, madame, me ajuda a enterrar minha sogra!”, e por aí vai o divertido repertório dos feirantes.

A casa pequena precisou ser reformada, mas só ganhou uma cozinha em L e um banheiro maior. Dormíamos no único quarto, com exceção do meu irmão mais velho, que estava no Exército, motivo das lágrimas da minha mãe, descontente pela volta a São Paulo e infeliz com a ausência do filho. Foram tempos difíceis.

Logo, porém, arranjei vaga numa boa escola pública, onde terminei o Normal, atual Magistério. Formada, dei aulas como professora substituta no colégio Salvador Rocco, que fica na rua Renato Rinaldi, mas foi por apenas um ano. Descobri que não queria dar aulas e enveredei por outros caminhos. Trabalhei em bancos, sindicato e finalmente encontrei a minha vocação profissional em editoras, junto aos livros que, desde criança, são a minha paixão.

Enquanto estudava, curtia a vida nos bailinhos da igreja Santa Marina e nas garagens de colegas do bairro. Iê-iê-iê, música italiana, Beatles, Bee Gees, The Platters, e outros, embalaram minha juventude e os sonhos românticos da geração dos anos 1960/70. Ah, e havia o velho Cine Carrão, onde assisti ao Candelabro italiano e Dio come ti amo, além das divertidas comédias de Mazzaropi.

Depois entrei na USP, onde cursei Letras e comecei a trabalhar longe de casa. Isso me fez ficar menos no bairro que serviu de cenário para os melhores anos da minha vida. E onde voltei a morar, depois de casada, por sinal na mesma casa em que nasci, agora bem ampliada. O casamento acabou e continuei no mesmo local, com minha filha Clariana.

Agora que estou aposentada, voltei a curtir o bairro. Participo de um grupo de senhoras da terceira juventude (rs) na Biblioteca Lenyra Fracarolli, que fica no Centro Esportivo Vila Manchester. Ali caminho e faço ginástica (de vez em quando...). É ótimo conviver com pessoas que se apoiam, trocam experiências e vivências, além de refletir sobre a condição humana nesta fase tão especial da vida.

Gosto muito de morar na Vila Carrão. Aqui iniciei a bela aventura de viver e daqui me atirei para caminhos nem sempre tão retos nem tão arborizados como suas ruas, por sinal, motivos de muitas fotografias e vídeos produzidos em minhas caminhadas que, admito, deveriam ser mais constantes, já que são fontes de prazer e essenciais para a saúde. Um dia chego lá, afinal, ser jovem há tanto tempo é um status que precisa ser mantido."


Introdução ao Depoimento: Malu de AlencarPesquisa de imagens: Eduardo Mendes
Fontes textuais:. Wikipedia – acesso em 18 dez 19. Guia Leste – acesso em 18-dez-19. Prefeitura de São Paulo. Página do Facebook – Eu amo a Vila Carrão
Fontes de imagem:. Disponiveis na internet. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin . Festival de Okinawa: