O prédio Martinelli

por Appio Ribeiro

14.12.2019

Créditos: O icônico Edifício Martinelli - Foto @offlimitsbr

Neste ano de 2019 ganhei de uma amiga o livro “O Prédio Martinelli – a ascensão do imigrante e a verticalização de São Paulo”, de Maria Cecília Naclério Homem.

Mais do que um livro, mais do que um presente, esse mimo foi uma homenagem ao pai da minha amiga Susete, porque o livro pertencera a ele – um presente de um seu sobrinho dado há 28 anos, em 1991. E ela me transferia esse livro “... em forma de lembrança... pelo (meu) trato com as grandes memórias dos idos...”, o que me aproximava de seu pai.

Creio que muitos de nós, quando colocados diante de uma foto antiga de um monumento, um edifício, uma rua ou praça, um lugar qualquer, podem ressurgir memórias que estavam escondidas em algum beco escuro da nossa mente. Afinal, tudo o que acontece em nossa vida, acontece em algum lugar. Alguns desses lugares se mantêm presentes, outros são jogados no limbo desses becos da memória.

Cada um de nós tem de cada lugar a sua própria referência, as circunstâncias associadas a ele, porém com o seu ângulo particular ou ponto de vista muito próprio. Enfim, a sua experiência com “aquele” lugar específico.

Quem não se lembra do pátio da escola primária, ou da fachada da sua primeira casa ou prédio, da casa da vovó, ou do caminho para ir à escola, ou do lugar onde conheceu o primeiro amor?

Da minha escola primária, do meu Grupo Escolar, tenho a visão da escrivaninha, debaixo da escada, em que minha primeira professora me ajudou, reforçando as aulas em classe para me alfabetizar.

Voltando ao Prédio Martinelli, ele é um ícone da cidade de São Paulo, até hoje preservado, depois de um período de decadência.

Ele foi símbolo da ascensão vertiginosa da cidade, a expressão da riqueza e pujança dos paulistanos e paulistas, orgulho da grande colônia italiana.

O prédio Martinelli, para mim, começou com o que meu pai me contava: o maior edifício, o primeiro arranha-céu, a determinação de um imigrante italiano, uma beleza de construção. Eu tentava imaginar, mas só imaginava.

Até que um dia, ainda de terninho de calças curtas – devia ter pouco mais de cinco anos, meu pai me levou por um passeio pelo centro da cidade. Eu não conhecia nada (depois aprendi, até para poder mencionar agora os nomes das ruas).

Descendo, de mão dada com meu pai, pela Avenida São João, ao chegar ao Vale do Anhangabaú, ele “me apresentou”:

- Está vendo aquele prédio... é o prédio Martinelli.

Olhando em sua direção, eu entortava o pescoço para conseguir ver até o último andar. Aquilo era gigantesco. Uma beleza. Maravilhoso.

Subimos a Av. São João, do Anhangabaú em direção à Praça Antonio Prado, pela calçada do prédio Martinelli. Eu olhando pra cima, meio abobado, com aquele monstro de cor meio avermelhada.

E nessa calçada, abaixo do Martinelli, pendia ­­-­ perpendicular à calçada e acima da porta de uma “lojinha” com pouco mais de uns 3 metros, um “luminoso”. Tinha a figura de dois porquinhos, que mordiam uma fieira de salsichas. O efeito de acende e apaga do neon, dava a sensação de que os porquinhos puxavam as salsichas cada um para seu lado, e a fieira esticava-se.

Era a “Salsicharia dos Dois Porquinhos”. Não sei se esse era o nome, mas para mim ficou para sempre: Salsicharia dos Dois Porquinhos.

Meu pai, que já a conhecia, levou-me para comer o sanduíche mais gostoso da minha vida. Pãozinho francês fresquinho, salsicha cozida na água, molho de tomate com cebolas... um manjar dos deuses.

Mas o tempo passou. Não muito, mas passou.

E já usando calças compridas, arrumei um emprego de boy no jornal Correio Paulistano, que ficava na Líbero Badaró, junto ao Largo São Bento, e bem próximo do prédio Martinelli e, é claro, da Salsicharia dos Dois Porquinhos. E quando conseguia fazer sobrar algum dinheirinho, lá ia eu me deliciar com o sanduíche dos dois porquinhos. Só que agora não tinha mais a mão de meu pai para me segurar. Mas aquilo me marcou.

Um ano depois, quando eu já tinha uns 14 anos, e trabalhava de boy nas Produções Cinematográficas Ricardo Malheiros, recebi a incumbência de levar um envelope pardo, grande, para uma determinada pessoa – não lembro o nome, apenas que era masculino, e tinha um endereço: Av. São João, número X, Y andar, apartamento Z.

Saí da Rua Martinho Prado, esquina com a Rua Augusta (onde ficavam os escritórios da produtora), e fui a pé para o local do endereço – na Av. São João - não me tocando que era o prédio Martinelli, afinal, já me acostumara com os prédios do centro da cidade.

Aí foi minha segunda experiência com o prédio Martinelli. Desta vez, por dentro.

O endereço era de uma entrada para o prédio. Uma portaria. Trocando o “t” pelo “c”, ficaria mais correto. Uma porcaria!

Chão sujo, paredes sujas, mal iluminadas, malcheirosas, aquilo era coisa de filme de terror ou gibi policial. Conferi o endereço e, infelizmente, era ali mesmo. A um homem mal-encarado, que estava numa espécie de balcão, tão desarrumado como o local, perguntei como entregar o envelope, mostrando o endereço nele escrito. Ele apontou, com má vontade, dizendo: “O elevador é ali”.

Fui para onde ele apontou ser o elevador. Aquilo parecia mais uma jaula. Jaula rebuscada, porque tinha ferros retorcidos, tela de ferro grosso, tudo preto, e uma grade de losangos na frente. Apertei o botão que ficava numa placa mais amarelada presa àquela jaula.

Comecei a ficar com medo. O barulho de uma máquina rangendo foi aumentando, indicando que o elevador se aproximava. Com um tranco parou. Tive vontade de voltar dali. Mas meu sentido de obrigação me dizia que eu devia entregar o envelope.

Se aquele espaço era escuro, dentro do elevador era mais ainda. Reuni toda a minha coragem – por sinal bem pouca – e puxei pro lado a porta pantográfica. Tive que fazer força. Mas consegui. E uma grade igual, por dentro do elevador acompanhou o movimento da primeira. Era a porta do elevador. Entrei e me senti dentro de uma gaiola.

O cheiro daquela jaula era ruim, muito ruim. Não estava acostumado àquilo. Achei que o meu medo me fazia ouvir ruídos bem ao longe. Achei que ouvia vozes e barulhos de objetos caindo. E também risadas e até choro de criança achei que ouvia. Ou era o meu próprio choro contido de medo? Um painel com botões redondos, com números semiapagados, indicava os andares. Apertei o botão com o número do andar escrito no envelope. O andar era bem alto.

Aquela jaula retorcida deu um tranco e com um rugido – que permaneceu o tempo todo –, começou a subir. Lentamente. À medida que subia, os maus cheiros foram se alternando. Uns ruins, outros piores. Cheiro de comida com cheiro de urina. Cheiro de mofo com cheiro de coisa podre. Cheiro de esgoto com coisa de cheiro azedo. Tudo misturado, embora a cada andar parecesse que um deles se sobressaía.

Aqueles sons eram reais. Eles aumentavam e diminuíam a medida que o elevador se aproximava e se afastava. Aquela lentidão foi uma agonia. Queria chegar logo ao andar, mas ao mesmo tempo queria que não chegasse para não ter de descer num andar. Foi inevitável: a gaiola parou e a porta de dentro se recolheu. Puxei a de fora que também se recolheu. Saí e entrei no lugar mais feio que já tinha entrado: um corredor enorme, com paredes enfeitadas com relevos que se repetiam, com o reboco caindo, lustres ou coisa parecida, a maioria apagada, e os acessos com tanta sujeira que a luz da lâmpada fraca mal passava, se enfileirava no teto do corredor que parecia não ter fim. E de passos em passos, havia portas, a maioria fechada, mas algumas abertas. Junto delas lixo. Algumas com lata de lixo, outras lixo sem lata mesmo. Lembro bem de uma das portas abertas, vinha um vozerio de homens. Cheirava a azedo. Ao passar por ela, pé ante pé, vi uns homens bebendo e falando: era um bar ou coisa parecida. Tremi e andei mais rápido.

Ao fim do corredor, cheguei ao número do “apartamento”. Não me lembro se toquei a campainha ou bati na porta. Eu queria que aquilo terminasse logo, porque o meu medo já era físico.

A porta apenas se entreabriu. O suficiente para eu ver um homem, velho, muito velho, magérrimo, malvestido, com suspensórios, olhos fundos, careca e com alguns tufos de cabelos brancos pendendo sobre as orelhas, que atendeu sem abrir totalmente a porta.

Acho que eu não consegui dizer nada além de “Isto é para o senhor”, e estender o envelope para ele. Ele pegou, e leu o envelope e agradeceu: “Obrigado”. O meu “de nada” eu já disse me virando e saindo o mais rápido possível por aquele corredor que temia ter de atravessar de novo. Eu nunca tinha visto uma favela, mas achei que aquilo era uma favela. O elevador acho que ainda estava no andar. Só sei que acho que ainda tremia quando ele parou no térreo.

Saí da portaria para a rua, respirei fundo, e aí me assegurei: minhas calças estavam intactas. Acho que sim.

E na calçada, já acalmado, vi os dois porquinhos espichando as salsichas. Lembrei do meu pai (que falta que a mão dele me fizera). E, como eu tinha algumas moedas suficientes, comemorei a minha vitória de calças limpas, comendo o sanduíche mais gostoso da minha vida.

Os Dois Porquinhos, no térreo do prédio Martinelli, ficaram na minha lembrança. Mas eu renovei minha presença junto a eles algumas vezes. Na verdade várias vezes. Fui trabalhar em outras empresas, continuei estudando, fui sendo promovido. E, como numa liturgia, cada vez que eu ascendia na carreira, recebia uma promoção, eu ia lá à Salsicharia dos Dois Porquinhos, comer o sanduíche mais gostoso da minha vida. E quase como numa oração, eu entrava e pensava comigo e renovava os meus votos de, por mais alto que fosse o cargo que eu ocupasse, eu nunca deveria esquecer os valores da simplicidade e da humildade. A primeira vez que fui sozinho à Salsicharia Dos Dois Porquinhos foi quando eu me empreguei como Office-boy no Jornal Correio Paulistano. E, talvez por ironia da vida, a última vez que eu comi o sanduíche mais gostoso da minha vida, foi quando fui nomeado Diretor Comercial do Diário Popular. Nenhum dos dois jornais existe mais. Mas o prédio Martinelli continua firme e forte, e não mais assustador.

E os sanduíches dos Dois Porquinhos não vão mais pro meu estômago. Ficam para sempre na minha memória e no meu coração.


Pesquisa de imagens para o site Cidadão e Repórter, feita pelo cidadão e repórter Eduardo Mendes

Fontes de imagem:. Imagens pesquisadas na Internet