Saimdang - memória das cores

Vera Bifulco e Heitor Reali(*)

19.10.2020

Monte Kumgang - Coreia do Norte

“Quanto mais distante o perfume mais se pode senti-lo.”

O cinema é uma arte que nos mostra todas as possibilidades sem termos escolhido nenhuma. Nesse momento de Pandemia, quando o mundo se concentra em descobrir novas formas de chamar nossa atenção, direcionadas à ciência, à saúde, ao convívio, ao melhor emprego que podemos fazer do tempo, algumas mudanças são bem-vindas, entre elas garimpar preciosidades nos canais que oferecem filmes.

“Saimdang, Memoir of Colors” (Netflix), do diretor sul-coreano Yoo Sang-ho, é uma dessas raras preciosidades. Inspirada em fatos reais, com doses de ficção, a trama se desenvolve ao redor da pintora e poetisa Shin Saimdang, que viveu no início do século 16, na era Joseon (Coreia).

A história, contada em duas épocas – interessante notar que os artistas interpretam papéis diferentes, um no presente e outro no passado –, se une por meio de uma pintura do Monte Kumgang, do famoso pintor coreano An Gyeon (século 15) que se acredita ser falsa.

A partir daí começa uma aula de cinema que vai na contramão dos efeitos especiais, focando apenas no lado humano dos personagens principais – Saimdang e o lorde Lee Gyeon. Obra-prima de interpretação dos artistas Lee Yeong -ae (Saimdang) e Song Seung-heon (lorde Lee).

Existem dois temas centrais que permeiam o desenrolar da trama do início ao fim, o AMOR e o CUIDADO.

Não há cenas de ardente paixão carnal. O filme trata de um amor que transcende o tempo, os obstáculos, que grita dentro do peito a despeito de sons verbais. Que preenche todas as entranhas do ser porque é pleno, puro, sublime. Ousamos dizer que tal amor transcende o plano terreno, é para raros casais porque difícil de ser vivido.

Em meio a paisagens de belezas impactantes, o diretor Sang-ho, com imenso talento no manejo da câmera, que transita de forma livre e sempre próxima de seus personagens, capta o mais precioso da série – os olhares.

A força (de todo) um amor que se transmite só pelo olhar e pela virtude do silêncio. E a cada episódio isso se destaca, pois a dinâmica da relação torna-se cada vez mais complexa. Face à adversidade só resta tentar viver. Não vamos dar spoiler, mas a frase do lorde Lee para Saimdang mostra a força desse amor: ‘Minha vida seguirá sempre paralela a sua’.

Vale notar que o filme se movimenta em dois tempos. Cronos, o tempo medido pelo relógio, calendário, rotina. É o tempo determinado dentro de um limite. Kairos, que significa o momento certo, oportuno. Enquanto Cronos quantifica, Kairos qualifica. Assim a trama intercala esses dois conceitos deixando a nós a reflexão, o que realmente é urgente e o que foge à urgência.

Esse filme contrasta com a realidade imediatista que vivemos, o homem se deixa engolir pelo tempo e perde sua noção. Limitados à sua percepção, um dilema desde sempre vivido pelos mortais. Somos seres eternos vivendo uma temporariedade terrena.

O momento presente contém o passado e o futuro, e dele dispomos para criar oportunidades e novas realidades.

Vemos na trama um cuidado com a palavra, não há desperdício nem excesso delas. O verdadeiro amor se entende no olhar, num terno sorriso, na intenção, na mímica facial, e no falar sereno, pois, “quando se eleva a voz é porque os corações já não escutam mais”. Os amantes nesta série se comunicam ainda pela arte, cores, e pelo cuidado.

A arte está na vida para além das telas, e o homem precisa dela para sobreviver.

Como nosso vocabulário é pequeno para representar tanta grandeza, o homem se utiliza das formas, dos símbolos para se expressar. É nelas que se eterniza para além do seu corpo físico.

Haveria muito mais a dizer sobre a série, como as vestimentas, por exemplo, as de Saimdang são belas na simplicidade e na ousadia das inusitadas combinações de cores, daí tão harmônicas. As das outras personagens femininas não têm o mesmo equilíbrio e delicadeza, pois os contrastes são intensos. Essa força da imagem faz parte da linguagem nos episódios. Mas, miro minha atenção no papel encantatório de Saimdang.

Não apenas mãe de quatro filhos (na vida real foram sete), artista e poetisa.

Saimdang preserva na voz, nos gestos e em sua beleza madura o viço, a audácia de quem se liberta do poder maligno de sua era. Leva à crença de que o amor consegue sobrepujar o ódio.

Sua beleza, quase divina, injeta vida nas pessoas, usa sua personalidade, sua simpatia pelos humildes, numa sociedade hierarquizada como a coreana da época, na qual o tratamento nivelado seria uma temeridade.

A série lança também um olhar muito forte sobre os 400 anos que diferenciam o passado do presente, onde pouca coisa mudou sobre a perversão do dinheiro, a dolorosa realidade dessa ganância que contamina a sociedade sul-coreana até os dias atuais.

Assista o trailer:

Saimdang, Light’s Diary

(*) Heitor Reali - articulista convidado
Revisão: Maite Ribeiro
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