A morte na formação dos profissionais de Saúde

por Vera Bifulco

01.07.2020

“Houve um tempo em que nosso poder perante a Morte era muito pequeno. E, por isso, os homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, nosso poder aumentou, a Morte foi definida como a inimiga a ser derrotada, fomos possuídos pela fantasia onipotente de nos livrarmos de seu toque. Com isso nós nos tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de que, quanto mais poderosos formos perante ela (inutilmente, porque só podemos adiar...), mais tolos nos tornamos na arte de viver. E, quando isso acontece, a morte que poderia ser conselheira sábia transforma-se em inimiga que nos devora por detrás. Acho que, para recuperar um pouco da sabedoria de viver, seria preciso que nos tornássemos discípulos e não inimigos da Morte.” (Rubem Alves)

As visitas a pacientes internados realizadas pelos profissionais da área da saúde, principalmente médicos, têm como objetivo checar o seu estado físico, mormente medem a pressão, os batimentos cardíacos, auscultam o coração e os pulmões, questionam se o paciente conseguiu realizar as funções de urinar e defecar, se conseguiu se alimentar, se está hidratado. Mas a pessoa que está ali é muito mais que aquele corpo presente, é um ser humano em todas as suas dimensões, físicas, mentais, espirituais, sociais e culturais. Ele pode estar com medo. Há riscos que permeiam seu momento de vida. Temos de entender que ser portador de uma doença que ameace a continuidade da vida é uma condição peculiar e sofrida. Sua vida naquele momento foge ao seu controle e ao controle de todos os técnicos e profissionais que cuidam dele. E não é qualquer pessoa que consegue tirar esse medo do paciente. Ele precisa confiar. O medo desaparece quando se confia. Mas para obter sua confiança esse profissional precisa entender o que está se passando com aquele paciente, não pode acuar, fugir, ter ele mesmo medo do enfrentamento que aquela situação desencadeia. Além do paciente, toda a sua rede de apoio necessita de cuidados especiais e de conversas francas e verdadeiramente esclarecedoras.

Os médicos aprenderam que sua missão é lutar contra a morte. Esgotados os seus recursos, eles saem da arena, derrotados e impotentes. Se eles soubessem que sua missão é cuidar da vida, e que a morte, tanto quanto o nascimento é parte da vida, eles ficariam até o fim.

Antigamente a simples presença do médico irradiava vida.

Num processo de “re-humanização” da morte, em que essa faz parte da vida, torna-se necessário que os profissionais revejam sua prática. Cuidar da pessoa e não somente da doença.

A morte é um fenômeno do cotidiano. Vemos sempre a morte como a morte do outro. Os outros morrem e eu ainda não. A minha morte, eu penso amanhã. Nos esquivamos da possibilidade da singularização da morte.

Atualmente vivemos um momento de Re-Humanização em todas as áreas voltadas à saúde.

Há consciência da finitude do homem e do sentido maior de se aumentar os anos de vida com qualidade de anos vividos.

A humanização evoca que o alívio da dor e o controle dos sintomas em Cuidados Paliativos devem começar desde o diagnóstico da doença crônica (oncológica ou não) até a fase avançada. Humanizar é a garantia de atender às necessidades desse paciente; as equipes multiprofissionais de Cuidados Paliativos reúnem médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e o serviço de administrativo (recepção, triagem, segurança e transporte), enfim, todos são importantes para confortar o paciente e pelos seus cuidados.


Humanizar – O que precisamos humanizar?

Como se humaniza?

É chegar até a pessoa para além da técnica.

É ter uma postura reflexiva na atuação.

Requer uma Educação AFETIVA

Os indivíduos são singulares e não podemos pretender que respondam da mesma forma às nossas intervenções, nem que mantenham uniformemente suas respostas a longo prazo.

Devemos distinguir dentro do Tratamento de Cuidados Paliativos: o paciente com dor e doença avançada, mas que ainda é elegível cirurgicamente e/ou para tratamento adjuvante, daquele ao qual só é possível oferecer algum tipo de conforto, mas sem controle da doença. A filosofia de Hipócrates declara que nada deveria ser mais importante para um médico do que os melhores interesses do paciente que o procura para tratamento.

Tratar um paciente requer não somente as considerações biológicas e psicológicas, como também as familiares, sociais, econômicas e aquelas que estão nas relações estabelecidas entre os sistemas envolvidos: o indivíduo e seu universo e o sistema de saúde e de tratamento, com suas múltiplas variáveis.

O controle da dor e de outros sintomas psicológicos, sociais e espirituais tornam-se prioridades para os profissionais da saúde, independentemente de sua especialidade. Aliviar o sofrimento, proporcionar conforto físico e emocional ao paciente quando a cura não é mais possível, assim como prestar assistência aos seus familiares até o enfrentamento da situação de luto são todas atenções que devem integrar sua prática.

Nos programas de Cuidados Paliativos, fala-se abertamente sobre o tema da Morte, o que ainda não é prática comum em nosso meio – nestes se discute longamente se o paciente deve ou não ser informado sobre a gravidade do seu quadro.

Esconder a verdade do paciente não é uma mentira piedosa, na realidade é uma falácia. Ela é cruel, pois com o evoluir da doença a sua própria natureza põe a descoberto uma suspeita que destrói a confiança do paciente no médico, na equipe e o que é mais doloroso, na família.

O gesto crítico que está contido em todo diagnóstico médico, em particular quando descobre uma doença grave, não adianta esconder, é melhor enfrentar; no entanto, como enfatiza o autor, o médico pode agir “pedagogicamente” ou não. Se souber agir pedagogicamente, comunicará a doença grave com jeito, fará desse diagnóstico o primeiro degrau de uma escalada para a possível cura ou convivência adequada com a enfermidade, e mostrará que o paciente, acima de tudo, pode contar com o médico irrestritamente. Se não tiver tino pedagógico, pode usar o diagnóstico para matar mais depressa. Muitas pessoas morrem literalmente de diagnóstico.

A aprendizagem está profundamente relacionada ao crescimento, não existe possibilidade de crescer sem aprender. Para aprender, não basta só olhar, mas ver; não basta só ouvir, mas escutar. Para que o olhar possa transformar-se em ver e o ouvir em escutar, o intervalo estabelecido entre eles necessita ser preenchido pela nomeação, possibilitada pelo pensamento. Por sua vez a experiência está profundamente relacionada com a aprendizagem, mas não qualquer experiência, mas, aquela que é nomeada, para que ela possibilite a apropriação.

O crescimento só se torna possível para quem tem a coragem de olhar e ver; ouvir e escutar, pensar a respeito do que ouve.

Ouvir não é um ato passivo. Escutar o outro é renunciar à posição de poder.

Assim esses profissionais precisam ficar atentos, em seu trabalho, ao não dito, às metáforas, às linguagens simbólicas, à linguagem corporal, criando um clima de confiança. A morte pode ser aterradora, desencadeando forças ainda não conhecidas vivenciadas pelos pacientes. Cuidar de doentes terminais pode ser uma aventura e requerer dos profissionais novas forças, trabalho com o inesperado, com fantasias de imortalidade, com o desejo de sobrevivência e com a sobrevivência dos desejos.

Os cursos na área de saúde, fundamentalmente para médicos e enfermeiros, têm enfatizado os procedimentos técnicos em detrimento de uma formação mais humanista. A peregrinação de cada médico na abordagem da doença grave é fazer o diagnóstico, planejar e efetuar a cura específica. A essa peregrinação Nuland, em seu livro Como Morremos, reflexões sobre o último capítulo da vida, denominou de “A Charada”. A satisfação de resolver a charada é a própria recompensa, é o combustível que faz funcionar a maquinaria clínica dos especialistas mais bem treinados da medicina. É a medida da capacidade de cada médico; é o ingrediente mais importante de sua autoimagem profissional.

Lembremos que o estudante de medicina, já no início do 1º ano, entra em contato com o cadáver na sala de dissecção. Mas o cadáver não é a morte, é tão somente o invólucro descartável do homem como um todo, isto é, aquele constituído de corpo, mente e espírito. Na realidade a morte é um processo que pode ser instantâneo ou lento, desapercebido ou sofrido. O processo de morte e morrer envolve etapas, fenômenos que antecedem a morte clínica propriamente dita.

Esse primeiro encontro do estudante de medicina com cadáveres, na aula de anatomia, geralmente causa, em alguns, intenso sofrimento. Como a expressão de sentimentos é pouco aceita socialmente, observa-se, com frequência, a presença de manifestações contrafóbicas, como fazer piadinhas, ou ficar indiferente (CONCONE, 1983). Tira-se qualquer identidade humana do cadáver, pois pode ser muito angustiante manipular órgãos se houver o pensamento de que se tratava de um ser humano. A desvalorização dos valores humanos principia na faculdade de medicina, como coloca Lown (1997). O autor segue afirmando que é um erro iniciar o curso de medicina pela dissecação de cadáveres na aula de anatomia. Para contrabalançar o horror dessa tarefa, os estudantes preferem considerar como objeto inanimado o corpo repugnante que cheira a formol; isso os leva a esquecer que “aquilo” já foi um ser humano como os vivos que o estudam.

A partir daí, e durante toda a aprendizagem desse aluno, percebe-se a dessensibilização a elementos que possam dar a entender a possibilidade de morte. Os corpos são então transformados em órgãos, “partes” como ossos, sangue, e a sua manipulação permite o conhecimento e uma falsa ideia de que, ao se combater doenças e sintomas, estar-se-ia também lutando contra a morte. Uma boa parte dos sentimentos de onipotência poderia estar ancorada aí.

Durante os seis anos de faculdade, acrescidos dos de estágio e residência, e pelo resto da vida profissional, tanto o médico, a enfermeira como os demais profissionais da área da saúde irão se deparar com a morte em diversas ocasiões e circunstâncias; a maioria, pela sua própria formação tenderá a não aceitar, não compreender. Eles a temem tanto quanto o leigo. Principalmente para o médico, ele precisa vencê-la, anulá-la, provavelmente para afastar de si o pensamento de sua própria finitude.

Há uma necessidade da abertura de espaços para sensibilização e discussão do tema da morte na formação dos profissionais da Área da Saúde, tendo em vista que vão se confrontar com o assunto em suas atividades cotidianas.

Com a deficiência dessa formação acadêmica, que não prepara os futuros médicos e profissionais da saúde para compreender melhor o processo de Morte e Morrer, o que vemos é um “olhar defeituoso” frente à morte de um paciente.

Cada vez que o médico consegue a cura de seu enfermo, é uma vitória pessoal contra sua própria morte.

Quando a morte ganha a batalha, leva o doente e o médico.

Emocionalmente, o profissional vê a morte de seu paciente como um fracasso, uma vitória de uma grande inimiga, uma derrota pessoal, quiçá uma angústia ante sua própria morte. O fracasso não é a perda de um paciente por morte, o fracasso é não proporcionar uma finitude digna, respeitosa. Mata-se o paciente ainda em vida, quando este é abandonado, pois sua doença é incurável.

“Podemos ajudar nossos pacientes a morrer, tentando ajudá-los a viver, em vez de deixar que vegetem de forma desumana” (KÜBLER-ROSS).


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Revisado por Maitê Ribeiro