O debate da quebra de patentes das vacinas contra Covid

A lentidão da vacinação por falta de vacinas e insumos disponíveis trouxe a discussão da suspensão dos direitos de propriedade intelectual.


Sonia Okita

05.06.2021
Crédito: Getty Images

Ideias todos têm, difícil é que tenham utilidade prática e não sejam só inovadoras, mas também aplicáveis para a solução de problemas. Uma vez concretizada, uma ideia deve atender os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. O registro de patentes protege uma determinada invenção/inovação de uma criação industrializável de concorrentes, e o direito é outorgado pelo Estado aos inventores/autores.

Com as vacinas nesta pandemia não poderia ser diferente. Logo no início, houve uma corrida para que o mundo inteiro se preocupasse e mais de uma centena delas começaram a ser desenvolvidas. Entre tantas, a novidade que deu certo, por enquanto, é a vacina produzida pela adaptação de uma técnica de terapia genética, que usa o RNA mensageiro, conhecida desde os anos 90, nos Estados Unidos, em estudos focados na pesquisa para tratamento de doenças como o câncer.

O segredo industrial é peça chave para os que se opõem à licença compulsória, a quebra da patente de uma vacina usada nesta pandemia. As farmacêuticas Pfizer e Moderna, pioneiras em fabricar as vacinas inéditas com RNA mensageiro do vírus, sintético, argumentam que não é a patente que provoca atraso na distribuição, mas a incapacidade de produzir e atender a demanda mundial, além do alerta de que daria acesso a segredos comerciais para a China e Rússia, os maiores concorrentes. A patente protege um título de propriedade de uma invenção ou modelo de utilidade, impede que haja plágio, e que a ideia que pertence ao inventor lhe dê direito pleno pelo uso e a comercialização.

Do ponto de vista jurídico, existem alguns elementos que não podem ser patenteados, por exemplo, descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos, métodos terapêuticos ou de diagnóstico para aplicação no ser humano, ou em animal. Estes tópicos, entre outros, são protegidos por lei visando melhoria de vida e bem-estar coletivo, é de interesse geral, contrário ao lucro excessivo das empresas.

E fica a pergunta: um procedimento que serve para salvar a vida de várias pessoas pode pertencer a uma empresa só, dando privilégios a uma pequena parcela da população?

É o que estamos vendo na prática. No editorial “Vacina para o mundo” da Folha de São Paulo, no dia 27 de maio, países ricos, que somam 15% da população mundial, receberam quase metade do imunizante.

Enquanto isso, um terço dos habitantes recebeu menos de uma dose, e nos países pobres essa proporção mal chega a 0,2%. Isso seria “um fracasso moral catastrófico”, segundo a Organização Mundial da Saúde. Países ricos, como o Canadá, preveem estoques equivalentes a 10 unidades por pessoa. Ao deixar grandes populações sem proteção se aumenta a chance de surgirem, por seleção natural, mutações em novas variantes.

Inovação patenteada: as vacinas gênicas induzem anticorpos sem contato com o vírus (Imagem Shutterstock)

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, declarou publicamente apoiar a suspensão dos direitos de propriedade das vacinas lá produzidas. Em contrapartida, o CEO Global da farmacêutica Pfizer, Albert Bourla, disse em matéria da ISTO É Dinheiro, edição de 19 de maio de 2021, que não abrirá mão do faturamento de bilhões de dólares com a venda da vacina Pfizer BioNTech para mais de 116 países, inclusive o Brasil.

A ruptura é contrária à forte proteção à propriedade intelectual longeva nos Estados Unidos, que tem apoio de países da Europa Ocidental e da indústria farmacêutica, já que investem pesado na pesquisa e inovação. A proteção dos direitos diante da Organização Mundial do Comércio (OMC) está garantida no Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS). Este Tratado prevê que antes da quebra de uma patente, os proponentes devem tentar uma negociação que pode resultar em licença compulsória por tempo determinado ou de preferência, melhores negociações de preços.

Índia e África do Sul, entre outras economias emergentes, que pressionam pela dispensa da proteção de patentes das vacinas contra a Covid-19, são apoiados pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Países pedem liberação de patentes de vacinas contra Covid-19 desde outubro de 2020 na OMC (foto: REUTERS/Carlos Osorio)

A proteção das patentes é justificada pelo alto investimento privado em pesquisa pelo setor privado, no uso de material e insumos, tempo de produção e principalmente alta efetividade. A quebra de patentes não vai aumentar de imediato o acesso às vacinas. Isto ocorreria se nos países em desenvolvimento com baixa taxa de vacinação se alocar recursos para produção imediata. Dentro deste perfil, somente a Índia teria capacidade de desenvolver as vacinas americanas porque possui estrutura produtiva.

Em complicações futuras, poderia ocorrer um desestímulo à inovação e produção de novos insumos e medicamentos, visto que patentes de curta duração podem trazer lucro a curto prazo e servem de estímulo em troca de progresso técnico. Se em emergências o monopólio é quebrado, fica a dúvida se as empresas continuarão investindo em inovação.

A suspensão de patentes por si só não gera aumento de produção. É essencial a capacidade técnica e instalações adequadas.

Há controvérsias acerca do investimento público em pesquisas nas universidades americanas e as empresas privadas que se beneficiam fortemente lucrando com alta produção em instalações super modernas e tecnologia de ponta.

No entanto, no Brasil tivemos dois exemplos distintos: o de tentar obter licença compulsória de medicamentos contra a aids em 2001, pelo então ministro da Saúde José Serra, e as empresas envolvidas, a Merck Sharp & Dohme e Roche, que se dispuseram a reduzir os preços dos medicamentos antivirais Efavirenz e Nelfinavir, e em 2007, o ministro da Saúde José Gomes Temporão não chegou a um acordo e efetivou a suspensão da patente do Efavirenz. Com estes medicamentos com preços mais baixos foi possível incrementar o programa nacional de distribuição gratuita para tratamento de pacientes com aids pelo SUS. É importante salientar que naquele período a capacidade produtiva global de medicamentos para aids era maior que a demanda, ao contrário, hoje a produção de vacinas é bem inferior ao necessário, comprometendo a importação de insumos insuficientes.

“Uma solução diplomática conjunta permite negociar melhores acordos comerciais, cooperação e transferência de tecnologia”, pondera a reitora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Soraya Smaili. Se não houver acordo, um rompimento unilateral obriga o país proponente a obter todos os meios para produção.

No Brasil, o Instituto Butantan em São Paulo, a Fundação Osvaldo Cruz no Rio de Janeiro e a Fundação Ezequiel Dias em Minas Gerais, são os três laboratórios que tradicionalmente fabricam vacinas e soros para diversas doenças.

Estas instituições não dispõem de infraestrutura com capacidade para produzir novas vacinas, além das que já produzem, afirmam Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan e Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz. O Butantan produz a CoronaVac, da chinesa Sinovac, e investiu em torno de R$180 milhões na construção de uma nova fábrica para aumentar a produção e o Fiocruz produz a do consórcio Oxford/AstraZeneca, com rendimento menor do que o Butantan. No setor privado nenhum laboratório farmacêutico conseguiria produzir novos imunizantes sem que se faça um investimento tecnológico grande correndo contra o tempo. Para Nelson Mussolini, presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos, Sindusfarma, “a oferta é condicionada não apenas à falta de capacidade instalada, mas também aos limites para produção de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA), o principal ingrediente das vacinas”, disse.

Os aspectos regulatórios e os projetos de lei no Congresso Nacional

Favorável ao licenciamento compulsório da IFA, o advogado Matheus Ferreira Bezerra, autor do livro Patente de Medicamentos (editora Juruá, 2010), defende que o licenciamento compulsório não deve ser uma medida para justificar a falta de investimentos em pesquisa e saúde pública. O setor público não deve contar com suspensão de patentes, considerado abusivo.

Ao contrário, o Ministério das Relações Exteriores reafirmou a posição do governo brasileiro contrária à quebra de patentes e defende que “uma patente típica contém apenas uma descrição da tecnologia que não é suficiente para habilitar um produtor a replicá-la. Tal esforço leva anos”.

Cinco projetos de lei estão em tramitação na Câmara dos Deputados e o Senado Federal aprovou O Projeto de Lei № 12/2021 em favor da quebra temporária de patentes de medicamentos (o Remdesivir) e vacinas contra Covid-19 foi aprovado pelo Senado Federal, deve seguir para a Câmara e depois para sanção presidencial. Altera parcialmente a Lei 9279 de 1996, que regulamenta a propriedade industrial no Brasil, no quesito do não atendimento das necessidades em estado de calamidade pública.

Em nota, o Ministério da Ciência e Tecnologia é favorável a qualquer consenso mediada pela OMC para intermediação de barreiras comerciais, assim como acesso à tecnologia e produção e que envolva propriedade intelectual em favor da saúde pública e combate à pandemia.

Revisão ortográfica: Anne Preste


Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade exclusiva de seus autores e pode não ser necessariamente a opinião do Cidadão e Repórter.Sua publicação têm o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.