O ócio criativo

por João Aranha

07.04.2020

Ontem mesmo tínhamos ferramentas maravilhosas. A tecnologia de que dispúnhamos, embora bastasse para que resolvêssemos a maioria dos nossos problemas cotidianos, evoluía em progressão estratosférica. Contávamos com as máquinas, a inteligência artificial e a robotização para nos aliviar dos trabalhos manuais. Éramos quase que senhores do nosso destino.

Subitamente, um ser de proporções infinitamente pequenas surgiu e nos remeteu para um confinamento em nossas casas.

Passamos de uma situação de domínio completo para um cenário trágico onde o indispensável está se tornando quase impossível de alcançar.

Constatamos então que houve um descompasso entre o desenvolvimento tecnológico – rápido e linear – e a concepção dominante do que é trabalho, do que é uma empresa e de como se estabelece a relação entre eles – lenta e descompassada.

Em resumo, hesitamos em abandonar os conceitos padrões da sociedade industrial e ingressar, definitivamente, no novo mundo da sociedade pós-industrial.

Sem que muitos tenham se apercebido, estamos vivendo mais, o uso intenso da tecnologia multiplicou nosso tempo livre, aumentou o nosso nível de escolarização e também o nosso acesso à cultura, sem falar nos inúmeros canais de informação de que dispomos.

Voltamos para séculos atrás onde o local de trabalho e a nossa casa se confundiam. Há um entrelaçamento entre as funções domésticas e as profissionais.

Para alguns, ficar em casa se torna algo agradável e tranquilo; para outros, no entanto, pode ser estressante e opressor.

Há quem aproveite para dedicar mais tempo à família, às crianças e a si mesmo. Outros se sentem perdidos, sem rumo, depressivos.

Nesse momento único, recomendo atentar para o que vem dizendo, há algum tempo, o sociólogo italiano Domenico De Masi, autor de vários livros, em que aborda, principalmente, questões relativas ao trabalho, ao ócio e à criatividade.

Segundo De Masi, a sociedade industrial separou o local de convívio das pessoas em relação ao local de trabalho, interpondo entre eles uma grande distância, o que leva o trabalhador, nas grandes cidades, a perder tempo precioso nos deslocamentos, além de contribuir ou para grandes congestionamentos ou para superlotação dos meios de transportes coletivos.

Nos tempos da pós-industrialização há inúmeros fatores que podem fazer com que grande parte dos funcionários possam exercer suas funções em casa, ou onde desejarem, munidos que estão dos seus celulares, notebooks, dos seus aplicativos e da internet. Com isso, anulam-se as distâncias e torna-se o tempo real.

Ainda segundo De Mais, uma revolução desse tipo não surgirá de uma hora para outra. Muitas empresas resistem e os chefes abominam a distância dos seus subordinados, acostumados que estão à rígida hierarquia, à competição e ao conformismo.

Cabe, portanto, que as empresas se redefinam, que deem mais valor aos objetivos e resultados do que às normas e procedimentos; que valorizem a informação em tempo real e que permitam a seus funcionários maior liberdade para que possam dar asas à criatividade, muitas vezes reprimida pela subordinação estressante existente nos escritórios.

Do ponto de vista das empresas, haveria menos despesas de manutenção, menos tempo perdido na solução de miniconflitos próprios do ambiente empresarial confinado, permitindo que, por esses e pelos outros motivos elencados acima, haja mais eficiência no trabalho.

Aos funcionários, economia de tempo e dinheiro e menos estresse e alienação;

à sociedade, menos poluição, menos trânsito, menos custo de manutenção das estradas e, nas cidades, melhor redistribuição das funções urbanas.

Nessa visão cada vez menos utópica de De Masi, dois fatores se sobrepõem: a criatividade e o ócio, ou, como ele mesmo diz, o ócio criativo.

A palavra ócio traz em si toda uma conotação negativa. Geralmente é relacionada com a preguiça e com falácias que falam em propensão aos vícios, às transgressões, ao individualismo anárquico e narcisista e na falta de solidariedade. Tudo isso levaria a uma crise econômica e a uma guerra entre os ociosos e os laboriosos que poderia gerar um regime autoritário.

Para De Masi há ainda o verdadeiro ócio, aquele positivo, que fala de distração, de alívio, de paz, de recreio, de diversão, de descanso, de lazer e, principalmente, do estudo, da leitura, do lúdico e das relações familiares, pessoais e sociais.

Na concepção do sociólogo, o ócio não se contrapõe ao trabalho, pelo contrário, ao estimular a criatividade surge a inovação até que um dia a cultura empresarial se misturará à cultura social, de forma que trabalho e vida sejam uma coisa só, com ganhos para ambos os lados.

Para o autor, o ócio regenera a mente dos criativos assim como a inércia regenera o corpo dos operários.

O tempo livre, que para muitos já é uma realidade, abre uma gama de inúmeras oportunidades que no entender do filósofo Bertrand Russel seriam as artes, as ciências, os livros, a filosofia e o refinamento das relações sociais. Na modernidade seriam também o teatro, o cinema, o bom uso da televisão, as viagens, as práticas esportivas e tudo o mais que permite que a fantasia criativa se transforme em concretude.

De Masi insiste que suas ideias não são proféticas, mas sim uma constatação dos fatos presentes. Não é parar de trabalhar, mas sim parar de se matar de trabalhar. Fazer com que as máquinas trabalhem sempre mais e os cidadãos sempre menos, alargando o tempo para que a humanidade possa pelo menos vislumbrar o conceito que sempre teve em mente do que é felicidade.

Para saber mais:

Obras de Domenico De Masi:

  • O Ócio Criativo

  • Uma simples revolução – Novos rumos para uma sociedade perdida

  • O futuro chegou

  • A sociedade pós-industrial

  • O futuro do trabalho

  • A emoção e a regra

Obras de outros autores:

  • A arte dos ociosos – Herman Hesse

  • Elogio ao ócio – Bertrand Russel

  • Perspectivas para os nossos netos – John Maynard Keynes

Revisão: Maitê Ribeiro