Entrevista: Marília Duque (*)

por Bernadete Siqueira, Myrian Becker e Sérgio Cahen

25.06.2020

Pesquisadora em envelhecimento, tecnologia e saúde fala sobre como a tecnologia pode proporcionar ao idoso bons papos e proteção.


CeR: Explique-nos o que vem a ser “Tem um Anjo no meu WhatsApp”.

“Tem um Anjo no meu WhatsApp” é uma campanha de conscientização que visa mobilizar a sociedade para as consequências do isolamento desencadeado pelo COVID-19 principalmente para idosos que moram sozinhos. A campanha sugere que as pessoas vasculhem seus contatos no WhatsApp e adotem algum idoso que mora sozinho. Esses voluntários, chamados de Anjos, têm três funções:

  1. Informar-se diariamente sobre o estado do idoso e estar disponível para conversar

  2. Fazer a ponte entre os idosos e as instruções oficiais do Ministério da Saúde. Como os downloads de aplicativos são uma das principais dificuldades dos idosos em relação aos smartphones, e como essas informações foram concentradas no primeiro momento no aplicativo Coronavírus SUS, o anjo tem como função ajudar os idosos a acessar essas informações.

  3. Ajudar na checagem de fake news.

  4. E o importante: nunca, em hipótese nenhuma, dar orientações médicas.

CeR: Conte-nos o que a levou a criar a campanha “Tem um Anjo no meu WhatsApp”.

Marília: A campanha foi uma consequência da minha pesquisa de doutorado; é sediada na ESPM e colabora com o projeto global Smartphone, SmartAgeing, sediado na University College London e financiado pelo European Research Council.

Durante 16 meses observei os idosos de um bairro de classe média em São Paulo. Durante o período, convivi com cerca de 400 idosos em diferentes grupos de atividades e locais de mobilização, incluindo igrejas e hospitais. Além disso, observei seus grupos de WhatsApp e entrevistei cerca de 30 pessoas. O objetivo da pesquisa é estudar o impacto dos smartphones para a saúde e o envelhecimento.

Minha expectativa era encontrar pessoas usando aplicativos desenvolvidos especificamente para a saúde, como de automonitoramento, visto que essa parcela da população é que pode demandar maior cuidado médico. No lugar desses aplicativos, o que observei foi a apropriação do WhatsApp para práticas de saúde, tanto intermediando a relação médico-paciente, como estruturando redes informais de solidariedade e cuidados (entre os próprios idosos e entre idosos e familiares).

É muito comum, por exemplo, que filhos, entre 50 e 65 anos, criem grupos de WhatsApp para coordenar o cuidado com pais idosos. Há também os grupos e chats que incluem cuidadores e médicos. E há também a comunicação estabelecida entre amigos, que vem substituir a ausência da família, de filhos, de vizinhos. O WhatsApp permite que pessoas idosas se sintam mais seguras morando sozinhas mesmo quando seus filhos moram em outros países, porque eles se fazem sempre presentes. Uma das participantes da minha pesquisa, cuja filha se mudou para estudar no exterior, disse, por exemplo, que as amigas delas disseram na época que ela estava abandonando a mãe. Entretanto, via WhatsApp, mãe e filha montaram uma rotina de cuidados e hoje ela avalia que a filha, mesmo morando em outro país, é mais presente que as filhas das amigas que moram na mesma cidade. Outra informante, também idosa, percebendo o impacto da solidão, adotou a rotina de todos os dias pela manhã mandar uma mensagem para algumas senhoras que ela sabia que moravam sozinhas. A mensagem dá conforto, mostra interesse e empatia e sinaliza que aquela conexão está ativa, podendo se converter em um canal para apoio.

Quando o coronavírus começou, ainda estava em Londres, com bolsa da Capes, dando andamento à análise de dados da etnografia feita em São Paulo. Eu já estava acompanhando a evolução chocante das mortes na Itália. Uma de minhas colegas pesquisadoras da UCL fez a mesma pesquisa que eu na Itália, onde muitos idosos também moram sozinhos. Tive a ideia então de fazer uma campanha de conscientização para que as pessoas adotassem idosos que morassem sozinhos a partir de suas redes de contato no WhatsApp. A escolha pelo WhatsApp foi consequência da minha observação sobre a familiaridade dos idosos com o aplicativo, o que se mostrou válido também em outras partes do mundo. E a iniciativa nada mais foi do que a aplicação de ideias que aprendi com os próprios idosos.

Mandei mensagem para dois amigos que falavam italiano e coloquei o pedido no grupo de WhatsApp dos meus colegas da escola primária. Em 15 minutos tinha 6 pessoas disponíveis para conversar com um idoso na Itália. Mas naquele momento já começavam as notícias do Brasil e eu resolvi focar os esforços aqui. Daí nasceu a campanha “Anjos no WhatsApp”, que visava justamente alertar para o impacto positivo que uma simples mensagem no WhatsApp pode gerar.

CeR: Como se sente sendo uma líder na Corrente do Bem que atende idosos?

Marília: Eu tenho sempre receio de me colocar como líder de qualquer coisa direcionada a idosos. Isso porque, durante minha pesquisa de campo, pude observar que os idosos são, eles mesmos, os grandes líderes de iniciativas que visam responder às demandas que a família, o estado ou o mercado não puderam (ou quiseram) atender como eles gostariam, considerando suas necessidades e desejos. Mas fazer a minha parte, como posso, e me baseando naquilo que aprendi com os próprios idosos, é o mínimo que poderia fazer em retribuição a toda colaboração e apoio que eles me deram durante a pesquisa. E o melhor foi poder expandir esse conhecimento para tentar impactar e dar algum conforto para idosos que não conheci pessoalmente, mas que reconhecem a validade da abordagem que propus. Isso é um sinal de que a pesquisa foi autêntica, com empatia, e com o cuidado da escuta. No final, essa corrente do bem não é para idosos, mas para todos. Os feedbacks que recebi dos anjos me mostram que, na prática, todo mundo doa, todo mundo recebe, todo mundo cuida e é cuidado. Eu mesma, minha idosa cuida mais de mim do que eu dela. É recíproco. E emocionante.

CeR: Como está sendo a experiência dos voluntários com a oportunidade de ensinar/ajudar o público da terceira idade a perder o medo na utilização de APPs?

Marília: A demanda por assistência na utilização de APPs não tem sido relevante. O maior impacto dos Anjos tem sido no cuidado, na conversa diária, no suporte emocional aos idosos.

CeR: O que o público da terceira idade e os voluntários têm aprendido e/ou ensinado nessa troca de experiências?

Marília: Talvez os Anjos sejam as pessoas que mais têm aprendido e se surpreendido com a interação. Primeiro porque eles tomam conhecimento da vulnerabilidade do outro, da solidão. E não é que todos os idosos sejam solitários. Mas, como todos nós, eles perderam a possibilidade do contato social, desde a ida à padaria pela manhã até a participação em cursos, eventos e encontros voltados à terceira idade. Segundo, porque a interação tem trazido um propósito para esse período conturbado. Os idosos são muito gratos. Os Anjos conseguem visualizar o impacto que uma simples mensagem traz. E eles se emocionam diariamente com isso.

CeR: Você tem conhecimento se os APPs, como o Coronavírus SUS, Rappi, Ifood, entre outros, estão sendo assimilados pelos 60+?

Marília: Não tenho. Eu dei aula como voluntária durante três semestres em um curso de WhatsApp dirigido à terceira idade. A unanimidade é o WhatsApp. Todo mundo usa, mesmo que alguns sejam usuários básicos. Além disso, alguns idosos usam o smartphone melhor, bem melhor, do que eu. Explorando mais recursos e apps. Esse foi outro ponto interessante que observei em minha pesquisa. A desenvoltura com a tecnologia não é definida pela idade, mas pelo tempo de aposentadoria. O trabalho é o local onde a tecnologia chega primeiro, de graça e com demandas aplicadas que facilitam o aprendizado. Com a cobertura midiática sobre a reforma da previdência desde a década de oitenta, muitas pessoas se apavoraram e se aposentaram muito jovens. Uma pessoa de 72 anos, por exemplo, que se aposentou há vinte anos, deixou o mercado quando os e-mails estavam se estabelecendo. É aí que mora o problema. Além disso, a compra via app também é complicada, principalmente em apps como Rappi e iFood. Ainda tem muita desconfiança e medo de usar o smartphone pra isso. E como culpar os idosos, considerando o número de golpes na internet e o fato de eles serem cada vez mais vítimas de extorsões?

CeR: Onde o público da terceira idade pode se inscrever para fazer parte do “Anjo no Whatsapp”? E também quem quer ser voluntário, como se candidatar?

O “Anjo no WhatsApp” não é uma plataforma que faz o match entre idosos e voluntários. É uma campanha de conscientização para ser praticada de forma orgânica. É o que digo: pense pequeno, comece por perto. E esse perto hoje é sua rede de contatos do WhatsApp. Apesar de ter recebido mais de 200 emails de voluntários, essa foi minha instrução. Para aqueles que não encontraram idosos, sugeri outras frentes, como a plataforma DOA TEMPO. Essa decisão de não fazer match é por questão de segurança, para não correr o risco de expor uma pessoa idosa vulnerável a golpistas. Eu só fiz a conexão nos casos em que idosos me escreveram diretamente me pedindo um anjo. Eu usei minha rede de contatos e amigos de amigos para encontrar pessoas confiáveis e disponíveis. O Eduardo Suplicy, que conheci por causa da campanha, tem me ajudado muito a criar essa rede.

O voluntário não precisa se inscrever, aqui tem informações de como participar: http://saudeeenvelhecimento.com.br/anjo/

CeR: Qual é a idade ideal para ser um Anjo da Guarda?

Marília: A indicação é apenas para maiores de idade. Tenho um caso lindo de uma jovem que me escreveu. Eu conhecia uma idosa que morava sozinha, não tinha filhos, nem família. Mas eu também sabia que ela era superindependente e não ia querer “precisar de ajuda”. Ela dá aulas de inglês. A jovem queria melhorar o inglês. Então essa foi a troca. A idosa ajuda a jovem duas vezes por semana com o aperfeiçoamento do idioma e ganhou uma pessoa que se preocupa com ela (adora ela, na verdade). Nas coincidências malucas dessa corrente do bem (que não foram poucas), elas descobriram que fazem aniversário no mesmo dia.

CeR: Existe alguma lista de terceira idade para se contatar ou devo iniciar dentro dos meus contatos?

Marília: Sempre a partir de seus contatos. Amigos e amigos de amigos (caso procure indicações).

CeR: Quando o Anjo tenha domínio de outro idioma, como poderá se conectar com uma pessoa da terceira idade fora do país? Há uma rede para contatos?

Marília: A campanha foi adaptada para um bairro do leste de Jerusalém, mas acabou não decolando em outros países, apesar da procura por parte dos voluntários. Para expandir a rede, é necessário que o anjo tenha conhecimento das instruções oficiais locais. Eles precisam, por exemplo, saber orientar (e se sentir seguro para) o idoso a procurar ajuda, caso ele tenha os sintomas do coronavírus e precise de assistência.

CeR: Você que vem estudando o público da terceira idade, indique alguns sites relevantes que atendem essa demanda.

Marília: Os melhores sites são os que são produzidos pelos próprios idosos, sempre. São mais autênticos, mais empáticos, e menos prescritivos.

CeR: Você tem intenção de transformar “Anjo no Whatsapp” em uma plataforma? Se sim ou não por quê?

Marília: Não, pra mim não faz sentido obrigar os idosos a saírem da plataforma onde eles se sentem confortáveis e esse lugar é o WhatsApp. Isso evita barreiras de aprendizado e adoção de novas tecnologias e é mais inclusivo, considerando os recursos que o WhatsApp tem.

CeR: Quando o coronavírus tornar-se um passado, em que poderá se transformar o Anjo da Guarda?

Marília: Meu sonho é que esse contato não acabe nunca. Eu moro sozinha em São Paulo. Pra mim, faz uma diferença absurda saber que tem uma pessoa esperando meu boa-noite. E que se ele não chegar, ela não vai sossegar enquanto não tiver certeza de que eu estou bem. Isso é assim, com pandemia ou sem pandemia. A diferença é que agora ganhei uma pessoa a mais que cuida diariamente de mim, que se preocupa e que me curte. Eu não pretendo abrir mão dela e espero que os outros anjos façam isso também.

CeR: Existem projeções para 2020 prevendo que o mercado da terceira idade, em todo o mundo, gaste em consumo aproximadamente US$15 trilhões. Você acha que a utilização dos smartphones pela terceira idade será representativa?

Marília: Já é na sociabilidade. No consumo, falta ultrapassar a barreira de adoção da tecnologia para ir das consultas às compras via aplicativos. Vai ajudar bem se as interfaces forem mais claras, considerando também necessidades da idade como letras maiores, botões melhores e explicações mais claras. Essa história de que o smartphone é intuitivo e que o idoso tem que ir testando e aprendendo é furada. O intuitivo só funciona se a pessoa se permite o erro, se ela pode tentar, eventualmente errar, e tentar de novo. Com os idosos com quem trabalhei, por exemplo, nos cursos, eles chegam com muita baixa autoestima, achando que tecnologia não é pra eles. Eles têm três medos básicos: quebrar o aparelho, apagar alguma informação importante ou ser taxado por algo que eles desconhecem. Passados esses medos, a curva de aprendizado é surpreendente.

CeR: Você está preparando uma tese para 2021 sobre “envelhecimento, saúde e smartphone”. Conte-nos um pouco sobre esse trabalho.

Marília: Minha tese é baseada na minha etnografia feita em um bairro de São Paulo. E São Paulo tem uma particularidade que é cruel com a velhice. São Paulo é o lugar do trabalho, onde a pessoa pergunta se você está bem e você responde onde está trabalhando e o que está produzindo. A tese vai tratar das dificuldades de perder o crachá e dos desafios de se manter produtivo nessa etapa da vida, o que passa a ser também uma demanda moral. Além disso, os idosos também terão um trabalho extra, lidando com a expectativa de se manterem saudáveis para não se tornarem um peso para a família, para o Estado e para a sociedade. A velhice chega cheia dessas obrigações e a grande mágica é como os idosos vão transformá-las em prazeres, capazes de conferir propósito à vida. Isso é outro ponto interessante. Se você espera uma resposta para qual é o propósito da vida, esqueça. Essa pergunta filosófica foi substituída pelo senso prático, pelo desejo de viver o presente com propósito, de se manter ocupado, de conquistar e consumir a cidade, de deixar um legado. Não para filhos, nem para netos. Mas para as próximas gerações de idosos que virão.

CeR: Fale um pouco sobre seu bisavô Raul Duque Estrada (parente de Osório-Duque Estrada, o compositor do Hino Nacional).

Marília: Só de ler essa pergunta já me dá vontade de chorar. Eu morro de saudades do meu bisavô. Quase todos os dias. Ele era a pessoa que mantinha a família unida. Era também o guardião de nosso passado. Ele que sabia desse parentesco e exibia com orgulho o brasão dos “Duque Estrada” estampado em uma louça que ele pendurava na sala. Era uma pessoa preocupada com o outro. Na sua casa, na Tijuca, que hoje teria 105 anos, tinha uma fonte de água mineral. Ele dizia que não era dele. E sempre deixava a casa aberta para quem precisasse de um copo d’água. Como a fonte tinha uma boa qualidade, todos os dias, à noite, ele conectava uma mangueira para abastecer o hospital que era seu vizinho. Ele também era surpreendente. Da primeira vez que me separei, meu pai surtou. Ele veio com um copinho de cachaça com limão e mel que sempre preparava e me disse “Minha filha, você está feliz? Então é isso que importa”. Era devoto de São Pedro. Todo ano fazia festa junina na sua casa e fazia questão de ser o noivo da quadrilha. Depois que minha bisavó faleceu, ele perguntava se já podia morrer. Eu dizia que ele estava proibido. Só podia morrer depois que eu tivesse um filho e que ele fosse trisavô. Ele esperou. Meu filho nasceu. Então ele perguntou de novo. E eu disse que de jeito nenhum; ele teria de conviver com o neto. Como se fala? Trineto? Nem sei. Ele obedeceu. E essa foi uma das maiores alegrias que tive. Meu bisavô morreu aos 100 anos, depois de ganhar uma festa linda, com toda a família. Na festa, ele disse que nem sabia o que tinha feito pra merecer tanto. Eu sei. Ele é, e sempre foi, uma grande inspiração pra mim.


(*) Marília Duque Estrada Soares Pereira é Doutoranda em Comunicação e Práticas de Consumo pelo PPGCOM ESPM e bolsista PSDE CAPES. Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pelo PPGCOM ESPM. Membro do Grupo de Pesquisa GPECC - Grupo de Pesquisa em Éticas, Comunicação e Consumo. Pesquisadora associada no projeto ASSA - Anthropology of SmartPhones and Smart Ageing (University College London). Possui graduação em Comunicação Social Com Habilitação em Publicidade e Propaganda pela Universidade de São Paulo (1998).



Revisão: Maitê Ribeiro