Entrevista: Cassandra Marques (*)

por Bernadete Siqueira

09.09.2020

“O idoso tem o direito de exercer sua cidadania e tem o direito de escolha e de ter preservada sua autonomia"


CeR: Como tem sido sua experiência como assistente social e principalmente quanto o cumprimento do Estatuto do Idoso?

Antes de contar minha experiência, fazendo uma relação das situações atendidas com o que está previsto no Estatuto do Idoso, gostaria de frisar aqui, pelo respeito que tenho à liberdade e à dignidade da pessoa idosa — direitos dos quais deve gozar —, que o idoso não é criança, não é uma pessoa cheia de manias ou teimosa, ou uma pessoa que ficou boazinha só porque passou a ser idosa. Tudo isso está no imaginário coletivo, produto da cultura de uma nação. Qualquer pessoa pode ser teimosa ou cheia de manias. Criança é a pessoa que está na faixa de 0 a 11 anos, 11 meses e 29 dias. Não devemos nos dirigir aos idosos como nos dirigimos às crianças. E se o idoso tem um comportamento diferente que pode até dar a impressão de infantilizado por conta de uma demência, por exemplo, doença que pode acometer as pessoas em idade avançada, ainda assim devemos tratá-lo como um idoso que apresenta um comprometimento de sua saúde mental e não como criança.

CeR: Como vê o seu trabalho com o idoso relacionado às políticas públicas para o envelhecimento?

Quando trabalhei no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), diretamente com as situações de risco para idosos, atuei em muitos casos onde pude identificar que a solução, ou o melhor encaminhamento, foi embasada no Estatuto do Idoso. Por se tratar de uma Unidade que atende especificamente as situações onde há padrões de comportamento que violam os direitos humanos (violência física, psicológica, sexual, negligência, discriminações, etc.) foi necessário acionar as medidas de proteção previstas no Estatuto e aplicadas pelo Ministério Público e Poder Judiciário.

CeR: Qual o motivo mais frequente que leva o idoso a buscar ajuda no Centro de Referência de Assistência Social onde a senhora trabalha?

Na minha experiência, não vi muitas vezes o próprio idoso buscando ajuda. Isso é um dado relevante, pois percebe-se que o ser idoso precisa saber mais sobre seus direitos e se fortalecer nesse processo. O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e a rede pública de serviços também têm um papel importante nesse trabalho de fortalecimento com respeito aos direitos e vínculos familiares e comunitários e precisam se empenhar nisso.

As situações geralmente davam entrada no CREAS, por exemplo, por meio de denúncias no Disque 100 – Direitos Humanos ou Conselho Municipal do Idoso, ou mesmo no próprio CREAS, geralmente feitas por pessoas da comunidade onde o idoso reside, a qual se indignam com as situações de longe, mas não se sentem parte como cidadãos que deveriam também proteger e não somente se indignar. Esse também é um desafio. É preciso militar pela causa dos “outros” e não somente militar em causa própria. Ou seja, se determinada situação diz a meu respeito, eu luto, se não diz, eu somente denuncio?

Sim, denunciar é muito importante, mas é preciso ainda se comprometer com os direitos humanos em ações que impeçam a propagação das violações desses direitos, como cita o artigo 3o do Estatuto. Nos poucos casos onde era o idoso que buscava o CREAS geralmente a demanda se tratava de apropriação indevida de bens (cartão de aposentadoria/benefício), conduta que é considerada crime pelo Código Penal. Deve ser registrado Boletim de Ocorrência (BO) e aberto inquérito.

CeR: Qual membro da família costuma procurar o Centro de Referência para tratar de assuntos do idoso?

Os familiares, principalmente os filhos, procuram os órgãos para dividir as responsabilidades ou para denunciar a situação em que o idoso está sob a responsabilidade de quem não cuida e ainda pratica a violência. Ou procuram por conta da sobrecarga de um único cuidador. Outro motivo de procura são as situações onde o idoso está abandonado e também para inserção em Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI). Para o idoso cuja família existe, mas é ausente no dia a dia pelas questões de trabalho, por exemplo, também aparece a busca pelos serviços com objetivo de inserção em Instituição.

É preciso falar aqui que há uma grande incidência de denúncias anônimas e infundadas, baseadas nas pré-noções acerca do envelhecimento, como, por exemplo, a ideia de que o idoso não pode morar sozinho, não pode sair, não pode namorar e quando os profissionais abordam esse idoso para entender a situação identificam que se trata de pessoa com condições de exercer sua autonomia e suas escolhas.

CeR: Em sua trajetória como assistente social há algum caso que chamou sua atenção?

Filhos que procuraram o CREAS porque estavam sendo responsabilizados pelo abandono do pai idoso. Mas relataram com muito pesar a ruptura dos vínculos familiares por terem sofrido violência durante toda a infância e adolescência, perpetrada pelo genitor, o qual abandonou a família. E aí quando esse genitor se vê sozinho, com idade avançada, próximo à finitude, aciona a família para receber apoio.

Ocorre que o Estatuto não abre brecha para essa situação. Temos muitos casos de idosos que foram verdadeiros tiranos em suas trajetórias de vida e, agora talvez mais frágeis e vulneráveis, recorrem judicialmente chamando a responsabilidade da família. Infelizmente quando, por meio de relatório técnico, apresentamos esse contexto ao Judiciário, o juiz sem demora sentenciou que a justiça não poderia garantir o amor, o afeto entre as pessoas, mas tem dever de garantir o direito previsto.

Como esses filhos não gostariam de cuidar de perto, então deveriam custear o pagamento do cuidador. Esse é um caso que o Estatuto não contemplou. Pois ele cita mais de uma vez o dever da família na proteção de seus idosos, sem considerar o fato de que esse idoso cuidou dessa família ou desprotegeu, quando ele era o responsável legal. O familiar se sentiu no direito de não cuidar, mas o Estatuto não diz isso. Quando foi obrigado pelo Sistema de Justiça a custear os cuidados com o idoso, se sentiu lesado.

CeR: O Estatuto do Idoso foi publicado há 17 anos. Com o aumento da longevidade, há algo a acrescentar?

A população idosa tem vivido mais. É preciso que viva melhor, em melhores condições. O envelhecimento passou a ser uma questão social. Por isso, penso ser de extrema importância falar do processo de envelhecimento desde a educação infantil, inserir no currículo escolar como disciplina mesmo. Para que a velhice deixe de ser esse segredo, essa coisa que, assim como a morte, ninguém gosta de falar. É preciso falar, é preciso conviver de forma intergeracional, para que assim possamos combater as pré-noções e possamos também nos preparar para a nossa própria velhice. Evitar a violência e o vínculo fragilizado. Ninguém nasce e rejuvenesce. A gente começa a envelhecer a partir do nascimento. Por isso é processo. E processo a gente tem de acompanhar para entender. Quem não acompanha é pego de surpresa e pode não estar preparado. Mas é preciso estar, pois, a menos que se morra antes, é fato que todos nós envelheceremos. E é possível ter uma velhice bem-sucedida. Se preparar dentro da sua vida, das suas possibilidades. Dentro do que fizer sentido para você, ser um idoso ativo ou contemplativo. Poder escolher. É o que desejo a todos nós!

(*) Assistente social e pós graduada em Gerontologia e Família Coordenadora do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da Prefeitura Municipal de Jacareí (SP)


Revisão: Maitê Ribeiro