Outono árabe - o que realmente esta acontecendo na Tunísia

Com a destituição do primeiro-ministro e a suspensão das atividades parlamentares, o país vive a maior onda de incertezas desde a Primavera Árabe.

Rafael Isenof

03.08.2021

Tunísia: ministro da defesa é demitido após dia de confrontos. Foto FETHI BELAID / AFP

Falar em Primavera Árabe sem citar a Tunísia é, com certeza, um grande pecado histórico e geopolítico. A República semipresidencialista, além de berço do movimento revolucionário, era considerada, até recentemente, o único país em que um sistema próximo a uma democracia teria sido instaurado. Hoje, todas as conquistas podem estar ameaçadas e a oposição do presidente Kais Saied já fala em golpe. Será que já podemos falar em um “Outono Árabe”?

Buscando contextualizar melhor o debate, insta esclarecer que a Primavera Árabe, em síntese, foi caracterizada por uma corrente de protestos populares que ocorreram no Oriente Médio e no Norte da África a partir de dezembro de 2010. Em oposição ao autoritarismo, milhares de manifestantes foram às ruas levantando bandeiras a favor da democracia e contra a repressão.

A Tunísia, em especial, vivia um momento de grande instabilidade, questão de tempo até a queda do regime do então presidente Zine El Abidine Ben Ali, acusado publicamente de liderar uma rede de corrupção pautada no uso da violência. O grande marco inicial da Primavera Árabe ocorreu em Ben Arous, província tunisiana, com a autoimolação do comerciante Mohammed Bouazizi, que ateou fogo em si como forma de protesto ao ter seu carrinho de frutas confiscado de forma arbitrária pela polícia local, que cobrava propina para devolvê-lo ao dono.

Com a escalada de protestos contra o governo, o ditador Zine El Abidine Ben Ali tentou amenizar a crise ao tentar visitar o comerciante no hospital, poucos dias antes de sua morte, o que não foi bem-visto e agravou a imagem negativa da gestão do líder. Com isso, sem opções, o presidente foi obrigado a deixar o país, o que ocorreu em meados de janeiro de 2011, um mês depois do início dos protestos. Em fevereiro, Zine El Abidine Ben Ali renunciou ao cargo, suscitando na constituição de uma assembleia escolhida pelo povo com intuito de eleger um presidente, o que ocorreu de fato em dezembro daquele ano, com a eleição de Moncef Marzouki.

As primeiras eleições diretas se deram em 2014, pleito em que o advogado Beji Caid Essebsi foi eleito, presidente responsável pela promulgação de uma nova constituição, passo importante na democratização tunisiana. Com seu falecimento em 2019, Kais Saied, atual presidente, assume o poder, em uma eleição histórica com 55% (cinquenta e cinco por cento) de participação dos eleitores.

O exemplo da Tunísia despertou os países próximos e o título “Primavera Árabe” vinha justamente com esse intuito, trazer uma verdadeira renovação através da democracia, o que, de fato, só aconteceu na Tunísia, que, mesmo assim, dez anos depois, tem sua democracia por um fio e as vozes do autoritarismo voltando a ressoar.

Presidente da Tunísia, Kais Saied, destitui governo e suspende parlamento. Foto Dursun Aydemir/Agência Anadolu

Na semana passada (25/07/2021, mais precisamente), o presidente Kais Saied, após manifestações públicas e duras críticas à gestão da pandemia no país, críticas entabuladas, inclusive, por parlamentares, destituiu o primeiro-ministro Hichem Mechichi e suspendeu as atividades do Parlamento por 30 (trinta) dias, ocupando, unilateralmente, as funções de Procurador Geral da República.

Em uma nação onde cerca de 7% (sete por cento) da população foram vacinados, somente agora medidas sanitárias eficazes estão sendo tomadas, como a imposição de um toque de recolher das 19h às 6h que durará 30 (trinta) dias e a proibição de reuniões com mais 3 (três) pessoas.

Diante deste preocupante cenário, fala-se em um golpe de Estado e uma volta ao autoritarismo, constatações veementemente negadas por Saied, que alega estar amparado no texto da Constituição. Inexistindo um tribunal constitucional, não existe uma forma legítima ou eficaz de impugnar, ou questionar os atos do presidente, agravando a exaltação dos ânimos. Nesse sentido, Rached Ghannouchi, presidente do parlamento e chefe Ennahda, maior partido tunisiano, declarou publicamente que Kais Saied não teria competência para destituir o primeiro-ministro, afirmando que o presidente só teria um “poder simbólico”.

Internacionalmente, muitas nações demonstram suas inquietudes e temem, ainda, uma crise diplomática. Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional do presidente estadunidense Joe Biden, em uma ligação de cunho claramente diplomático, teria conversado com Saied e declarado apoio à democracia tunisiana e reafirmado a importância de direitos fundamentais e da vigência de um Estado de Direito.

Junto a tudo isso, o grupo fundamentalista islâmico contemporâneo conhecido como Irmandade Muçulmana estaria fomentando as manifestações populares, pedindo publicamente que o governo se abra para um “diálogo sério” para evitar caos e destruição. Destaca-se, nesse ponto, que o grupo é considerado terrorista por alguns países e tem forte influência sobre o governo tunisiano.

Todos os olhos estão voltados para a Tunísia e todo o simbolismo do país na luta contra o autoritarismo está abalado. Aparentemente, os efeitos da Primavera Árabe já estão no passado e o movimento que representaria o desabrochar das flores da liberdade começa a murchar e cair. O futuro, naturalmente, é incerto, mas espera-se que as forças democráticas prevaleçam e que as flores continuem assim, floridas.

Revisão ortográfica: Anne Preste

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