Utopias

por João Aranha

10.01.2020

Quadro Noite Estrelada de Van Gogh

Os povos antigos nos legaram uma tradição que nos fala de uma era primordial, quando a humanidade viveu uma existência simples, contudo mágica, onde todos viviam em perfeita harmonia com a natureza.

Essa época, descrita de forma bastante similar por diversas civilizações, foi chamada de Idade do Ouro, Estado Áureo ou Idade da Virtude Perfeita. Culturas não tão avançadas, como a dos aborígines australianos, a chamavam de Tempo do Sonho e os Guaranis, da América do Sul, mantêm até hoje sua crença na Terra Sem Mal.

Com pequenas variações, mas sempre contendo o mesmo fundamento, esses relatos se assemelham bastante com o texto bíblico da existência do Paraíso e do Jardim do Éden.

Da mesma forma, as narrativas coincidem ao falar de uma Queda, momento em que os homens perderam contato com a fonte sagrada, apegando-se demais às coisas materiais e distanciando-se, cada vez mais, da natureza.

À Queda sucederam-se diversas catástrofes e cataclismos, também presentes de formas bem semelhantes nos relatos de várias civilizações, desaguando, finalmente, na atual civilização, que seria, portanto, fruto de uma decadência espiritual e moral.

A humanidade, no entanto, nunca perdeu a capacidade de evocar arquétipos universais relacionados à Idade do Ouro.

Carl Gustav Jung, psicólogo e filósofo suíço, analisou exaustivamente esse problema, afirmando que a Idade do Ouro era um sonho arquetípico, santificado através dos tempos, necessário aos homens para dar-lhes um sentido mais amplo de vida e que, acabando o contato com a natureza, esvaía-se a profunda energia que essa conexão simbólica alimentava.

Jung afirmou também que toda essa herança espiritual contida no inconsciente coletivo permitia, quando acessada, que a humanidade acalentasse as mesmas esperanças e expectativas de retorno à Paz Universal, Igualdade entre os homens e prevalência da Justiça e da Verdade.

As primeiras manifestações conhecidas de projetos que visavam restabelecer uma vida equilibrada e feliz ocorreram no Egito Antigo, materializados na construção de cidades-modelos as quais objetivavam transferir para a Terra os princípios que dirigem e movimentam as forças celestes e que, por meio de um processo de assimilação, acabariam por influenciar toda uma região e, pelo mesmo método, todas as terras habitadas.

Um dos primeiros relatos conhecidos de cidade ideal foi citado na obra denominada Picatrix, que fala da cidade de Adocentyn erguida pelo homem-deus egípcio Hermes Trismegistus, no norte do Egito.

Posteriormente o faraó Akhenaton, que introduziu o monoteísmo no Egito, inspirado pelos mesmos princípios, construiu a cidade de Amarna, localizada entre Tebas e Mênfis e cujas ruínas podem ser visitadas ainda nos dias de hoje.

Na Grécia Antiga, Pitágoras, em Crotona, objetivava transferir para a Terra a Harmonia que preside a constituição do cosmos e traçar, de acordo com ela, as regras da vida individual e do governo das cidades.

Platão, em sua obra A República, diz que devíamos fazer tudo para imitar a vida que existiu nos dias de Cronos, o deus do tempo. Tomou como modelo uma cidade celeste que aqui se implantaria e que seria gerida por puros e autênticos filósofos, sobrepondo o poder filosófico ao poder político, por meio de uma ação iluminada pela Verdade e por um gesto criador de Harmonia, Justiça e Beleza.

Foi também Platão quem falou da existência da Ilha de Atlântida, conforme ele mesmo constatou em inscrições contidas em templos egípcios. Os atlantes, segundo Platão, tinham parentesco com os deuses e viviam na virtude até que as características humanas tornaram-se preponderantes e, a exemplo de outras civilizações, houve a queda e o fim catastrófico.

O termo utopia, no entanto, só seria cunhado no século XV, adotado pelo britânico Thomas Morus, um crítico mordaz, que escreveu um livro clássico, uma espécie de chamada à razão, cujas ideias mexeram fortemente com os conceitos rígidos de hierarquia social e imobilismo que caracterizavam a Idade Média.

Utopia, nome dado à ilha de Morus, vem do grego, podendo significar “ou topos”, “não lugar” ou “eu topos” “bom lugar”, e pode ser entendida como a busca permanente da felicidade, em todas as épocas e lugares, possíveis ou imaginários. Com o passar do tempo o termo utopia evoluiu para um significado mais relacionado a um ideal de difícil ou impossível realização.

Morus, inspirado pelas ideias de Platão e incentivado pelas cartas de Américo Vespúcio, que relatava as maravilhas paradisíacas encontradas nas terras recém-descobertas além-mar, criou a sua Ilha Utopia procurando mostrar que a comunidade perfeita existiria se homens de boa vontade assim o quisessem.

Ainda sensibilizado pela miséria da população e pelas injustiças e atrocidades cometidas pelos donos do poder, em 1602, o dominicano Tommaso Campanella publica a obra A Cidade do Sol, onde seus habitantes, uma vez determinados, resolveram começar uma vida filosófica, pondo todas as coisas em comum, segundo a força e a capacidade de cada um. O líder dessa comunidade chamava-se Metafísico e era assessorado por três chefes chamados Potência, Sapiência e Amor e os magistrados tinham nomes que correspondiam às virtudes que defendiam.

Com o advento do século XVI, após o descobrimento de novas terras, do renascimento das artes e das reformas e contra-reformas religiosas, o mundo foi sacudido por uma nova visão filosófica: o racionalismo científico. Para se abarcar o conhecimento é preciso ordem, método, razão e ciência. E foi com base nesses princípios que o filósofo inglês Francis Bacon criou a sua utopia que chamou de Nova Atlântida.

Bacon chamou sua ilha de Bensalem e seu rei mais antigo chamava-se Solamona que fundou e instituiu uma ordem chamada Casa de Salomão, que herdou do rei hebreu partes de suas obras e de seus conhecimentos secretos.

As ideias de Bacon se alicerçavam no controle científico alcançado sobre a natureza, mas, ele mesmo advertia que natureza não se vence, senão quando se lhe obedece. A ciência e a tecnologia imporiam a organização econômica e social que levariam a harmonia e o bem-estar da sua Nova Atlântida.

As utopias de Morus, Campanella e Bacon se revestiam de características filosóficas e intelectuais, já que estavam preocupados em reformar os sistemas socioeconômicos vigentes. Apoiados em Platão, no entanto, foram verdadeiros arautos de um mundo bem melhor, levando esperança aos habitantes da época em que viviam.

Hoje sabemos que um mundo bem melhor não se conquista com espadas, revoluções ou mesmo palavras. Esse mundo bem melhor primeiro tem que ser construído dentro de cada homem, nos corações e nas mentes de cada um e somente esse Homem integrado e objetivado terá condições de transformar o que para muitos é uma utopia em realidade.