por João Aranha
15.01.2021Por milhares de anos os homens sobreviveram em função de suas próprias experiências de vida, tentativas de erros e acertos que, ao longo do tempo, se solidificavam e, por tradição, passavam de geração para geração.
Este conhecimento, dito ordinário ou vulgar, que independia do conhecimento científico, se preocupava mais com os aspectos de como fazer, como resolver e como produzir.
Com o avento das conquistas científicas a partir do século XVII, o senso comum, aos poucos, estava se tornando irrelevante, ilusório e falso.
A autoridade da Igreja era suplantada pela razão e pelo rigor dos princípios e das leis científicas, instalando-se um novo poder com uma autoridade muitas vezes arrogante e dogmática que pretendia explicar e resolver os grandes enigmas do universo.
O novo paradigma que então surgia, levantava inúmeras questões, sendo a mais recorrente delas aquela que indagava se haveria razões de peso para que o conhecimento vulgar da natureza e da vida pudesse ser substituído pelo conhecimento científico, produzido por poucos e inacessível à maioria.
Um dos mais interessantes embates ocorrido entre um representante do senso comum e a elite cientifica da época, ocorreria na Inglaterra, em 1714.
A questão que se apresentava como da maior urgência e importância era a determinação da longitude, fundamental para que houvesse segurança para as embarcações em alto mar, conhecendo-se a localização exata das naus e permitindo que navegassem no rumo certo.
Ao observar a passagem do Sol, da Lua e dos planetas por cima do Equador, desde a antiguidade sabia-se que o paralelo de grau zero, a latitude, era fixada pelas leis da natureza. Já a determinação da longitude, principalmente em alto mar, onde não se tem um ponto de referência, era uma questão bastante complicada, cuja solução já perdurava por 400 anos.
Enquanto a determinação da latitude está relacionada com os fenômenos físicos, a longitude tem a ver com o tempo. Ora, sabendo-se da hora em que o navio zarpou de um porto e determinada hora em que o navio se encontra, consegue-se determinar a longitude. Como a Terra leva 24 horas para dar uma volta sobre si mesma - ou seja, 360 graus - uma hora equivale à quinze graus. Dessa forma, cada hora de navegação, a partir do porto, representa quinze graus de longitude para leste ou oeste.
Nessa linha de raciocínio um bom relógio poderia resolver o problema. Acontece que a tecnologia existente na época era incipiente. Os melhores relógios costumavam atrasar ou adiantar quinze minutos em cada vinte e quatro horas e o que era pior usavam um sistema de pêndulo que, em alto mar, atrasavam ou adiantavam mais ainda ou costumeiramente paravam de funcionar.
Isaac Newton já havia se pronunciado sobre a utilização de relógios para resolver o problema: “quando a longitude se perde no mar, não pode ser recuperada por nenhum tipo de relógio.” E, mais uma vez, apostou na ciência, na certeza de que “as engrenagens do universo acabariam por prevalecer na tarefa de guiar os navios no mar”.
Chocado com a perda recente de toda uma frota que se chocara com rochedos, o parlamento inglês resolveu adotar
O que hoje conhecemos como os benefícios da inteligência coletiva. Instituindo um prêmio milionário de vinte mil libras para quem conseguisse desenvolver um método prático e útil que conseguisse determinar a longitude.
Atraído pelo vultoso premio, um obscuro carpinteiro do interior da Inglaterra, John Harrison, criou coragem para submeter seu invento, nada mais que um relógio aperfeiçoado, ao Observatório Real em Greenwich, cujo astrônomo real era o grande dr. Edmond Halley, o descobridor do cometa.
Harrison era dotado de um senso prático e criativo que lhe permitia dar o melhor aproveitamento aos materiais que lhe caíssem nas mãos.
O relógio de Harrison não era um relógio comum. Ele havia trabalhado nele por quatro anos. Procurou encontrar soluções que dessem ao relógio, além da precisão, uma utilização de materiais que pudessem suportar as agruras dos mares revoltos.
A madeira e os metais teriam que ser especiais, assim como as engrenagens. Substituíra a lubrificação por um mecanismo livre de fricção, e os pêndulos, tradicionalmente utilizados nos relógios da época, por um conjunto de molas em balança, aptos a fazerem frente aos maiores vagalhões.
Enquanto os melhores relógios da época atrasavam cerca de um minuto por dia, o de Harrison, testado nas mais dificultosas condições atrasava no máximo um único segundo por mês.
Acontece que Harrison era um perfeccionista. Ao receber um pequeno adiantamento, o carpinteiro que se tornara um relojoeiro retornou para casa e trabalhou por mais cinco anos aperfeiçoando seu invento.
A partir daí se iniciaria uma verdadeira batalha entre o teimoso relojoeiro e astrônomos, matemáticos e navegadores de renome para os quais não poderia haver uma resposta mecânica para uma questão relacionada à astronomia.
O maior trunfo dos cientistas da época para determinar a longitude era aperfeiçoar o método do relógio celestial, baseado no cálculo do movimento da lua.
De um lado cálculos complicadíssimos que dependiam de condições climáticas favoráveis e de outro uma “caixa mágica”, simples e direta que parecia não depender de conhecimento nenhum para funcionar.
Enquanto Harrison trabalhava por anos a fio no sentido de cada vez mais tornar seu cronômetro marítimo confiável, os cientistas impunham a ele os mais descabidos obstáculos, visando ganhar tempo para rever suas teorias, utilizar novos instrumentos e obter as informações necessárias para finalmente compreender o relógio celestial.
O auge da refrega ocorreria quando o reverendo Nevil Maskelyne assumiria o posto de astrônomo real.
Maskelyne, assim como Harrison, era um obstinado. Formado nas melhores escolas da época, o reverendo garantiria a seus pares que encontraria uma solução para a questão da longitude, necessitando apenas de ganhar mais algum tempo.
Harrison, por sua vez, não desistia. Velho e cansado viu seu invento ser testado e aprovado nas mais severas condições. Mas o Conselho sempre concluía que as experiências feitas com o cronômetro não eram suficientes para determinar a longitude no mar.
Começaria então uma perseguição implacável por parte de Maskelyne contra Harrison. O astrônomo real exigiu que o relojoeiro entregasse todas suas plantas e seus relógios para que ele mesmo os testasse em terra.
O máximo que Maskelyne viria admitir seria considerar o relógio apenas como algo que poderia aprimorar o método da distância lunar, mas jamais suplantá-lo.
Cansado de tanta injustiça, o filho de Harrison resolve recorrer ao rei George III que se interessava muito pelas ciências.
O rei assim se manifestou: “Essas pessoas foram tratadas com crueldade e eu farei com que a justiça lhe seja feita”.
O Parlamento então autorizou entregar a Harrison a metade do prêmio que fora estabelecido. Mas o reconhecimento de sua descoberta jamais lhe seria conferido.
Comparando-se o cronômetro com o método das distâncias lunares, o primeiro mostrou-se muito mais prático e confiável. Se em 1737 havia apenas um único exemplar do cronômetro marítimo, em 1815 já haviam 5 mil instrumentos sendo utilizados.
O Conselho da Longitude foi extinto em 1828 e um relojoeiro obstinado que recusou ser membro da Royal Society foi o responsável pela salvação de milhares de vidas e pela expansão e grandeza do Império Britânico, tendo resolvido a mais importante questão científica dos séculos 17 e 18, uma solução que ficou à espera dos melhores cientistas por quatro séculos.
Hoje, graças ao GPS, podemos nos localizar onde quer que estejamos. As redes de satélites que se conectam com estações de controle estão espalhadas por todo globo terrestre num prenúncio de que talvez a ciência tenha vencido o senso comum, o que seria verdade não fosse um pequeno detalhe: Para que tudo isso funcione há necessidade de se instalar em cada satélite um relógio atômico de alta precisão, uma evolução tecnológica daqueles vários artefatos criados por um carpinteiro apaixonado por relógios.