Redenção da humanidade. É possível?

por Maitê Ribeiro

11.07.2020

Completamos oficialmente, no dia 24 de junho, três meses de isolamento social por causa do coronavírus. Tempo suficiente para pormos à prova a nossa resiliência diante de uma crise sanitária jamais experimentada antes.

Nesse período, fomos bombardeados por notícias quanto a possíveis medicamentos – como a cloroquina, que ao final foi descartada por seus terríveis efeitos colaterais; a dexametasona, um corticoide que só pode ser usado em pacientes graves; a busca por uma vacina – cujos estudos vêm sendo acompanhados com justificada ansiedade; e o crescente número de vítimas por todo o mundo, veiculado em tom alarmista pela maioria das mídias, gerando medo e sensação de estarmos encurralados num beco sem saída.

Em meio a tudo isso – e para piorar –, a tremenda crise política provocada por um Executivo que não se alinha com os demais Poderes e debocha da ciência e da própria OMS, incitando a população a fazer o mesmo, negligenciando as medidas salutares de segurança pessoal e coletiva. E o pior: demitindo, em plena pandemia, dois ministros da Saúde que ousaram discordar dos seus desatinos.

O tempo passa muito rápido. Agora são mais de 100 dias de isolamento social, mais de um milhão e meio de infectados e passa de 65.000 o total de mortes no Brasil. Neste ranking só não superamos os Estados Unidos. Triste marca de um mórbido campeonato mundial em que não há vencedores, só a dor das famílias enlutadas pela perda de entes queridos, além do estresse e baixas entre profissionais da saúde, que não foram poupados de ataques e discriminação, por parte de pessoas ignorantes, como se fossem disseminadores do próprio vírus.

Apesar desse quadro aqui apenas pincelado – porque a realidade já está desenhada em cores sombrias demais, abalando a saúde mental da população –, buscamos formas de entendimento do impacto da crise sobre a vida das pessoas e, na ânsia de nos livrarmos logo dessa ameaça à nossa sobrevivência, já projetamos como será a vida no pós-pandemia.

Ainda é cedo para definirmos o futuro, nem sequer sabemos se haverá futuro, a crer nas teorias escatológicas eivadas de religiosidade, e algumas de crendices, mas nada nos impede de projetar as mudanças, que variam de acordo com a perspectiva de cada um. Sem esperança, o homem não suporta por muito tempo a dor da doença, a incerteza dos seus dias, o medo da morte.

Não faltam especulações e teorias sobre a retomada do que já se convencionou chamar “o novo normal”. Que de novo não terá nada. O filósofo Mario Sergio Cortella foi enfático ao afirmar, em entrevista à Folha de S. Paulo, no dia 16 de abril:

“Não creio numa redenção, creio que muita gente, após um susto tomado, vai olhar algumas coisas de uma perspectiva diferenciada. Mas quando se olha a humanidade ao longo da história, percebe-se que nunca demos sinais de que aquilo que nos traumatiza, quando termina, nos redime. As lições são aprendidas por uma parte, mas há uma outra parte que só quer voltar ao normal.” (Mario Sergio Cortella)

O povo continuará a iludir-se indo às compras de forma desenfreada, como já ocorreu quando da abertura dos shoppings, estrategicamente efetuada antes do Dia dos Namorados, provocando filas imensas de pessoas acotoveladas, febris não pelo covid-19, mas pelo vírus do consumo. A maioria das pessoas está ansiosa de que tudo isso acabe para retomar a mesma rotina de antes.

Algumas mudanças, no entanto, ocorrerão. No plano social, vislumbra-se o avanço da telemedicina, a consolidação do estudo a distância devido à suspensão das aulas, a adesão ao home-office, que parece ser uma tendência, a comunicação por meio de videochamadas, que tanto serviu para amenizar a solidão dos confinados e até o prosaico retorno do cine drive-in, que pode ser efêmero, mas despertou nostalgias na geração dos anos 1980 e pode continuar de forma repaginada. Por que não?

No plano existencial, pelo menos algumas pessoas acham que a humanidade emergirá transformada. Que essa experiência-limite trará uma nova forma de olhar a vida, com mais consciência e respeito por si mesmas, pelo próximo e pela Natureza. Com mais diálogo e amorosidade uns com os outros, à semelhança dos relatos das experiências de quase-morte em que as pessoas voltam à vida com uma nova visão do sentido da existência. Estamos numa experiência de quase-morte, embora saibamos que é desde sempre, já que somos mortais, e a “Indesejada das gentes”, segundo Manuel Bandeira, nos espreita em cada esquina. Mas não com a voracidade de uma pandemia, bradarão os mais desesperados.

“Quando a Indesejada das gentes chegar

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,

A mesa posta,

Com cada coisa em seu lugar.”

(Manuel Bandeira)

Muitas pessoas não terão limpado a casa, outras sequer têm casa, muito menos campo, nem tampouco mesa posta porque não há comida. Sob esse ângulo ainda mais cruel do quadro pandêmico, a previsão é catastrófica por revelar a vulnerabilidade das camadas mais pobres, dos moradores de rua e das comunidades, que não têm recebido os cuidados necessários para evitar o contágio.

Para minimizar esse cenário, algumas iniciativas solidárias têm acontecido. Criaram-se sites para doação de cestas básicas, máscaras, álcool em gel etc. Campanhas de prevenção estão em todas as mídias, principalmente na TV, que entra na maioria das casas. Não contemplam toda a população mais carente, mas toda ajuda é bem-vinda.

Enquanto essa pandemia não acaba, é importante lembrarmos que o medo deve ser superado pela esperança e, mesmo que esta possa ser a última que morre, será a primeira a renascer em uma nova realidade. Que pode não ser a de uma humanidade redimida, mas com certeza haverá uma massa crítica de pessoas mais conscientes, com uma nova visão de mundo, que fará a diferença para as futuras gerações.