Pássaro na gaiola

por Maitê Ribeiro

01.04.2020

Quantos dias já em casa?

Não sei...

Tô quinem o detento que, para saber há quanto tempo está preso, faz risquinhos na parede. Só que esqueci de fazer... ah, mas tem calendário! Esqueci de olhar no calendário, parece que eu não quero...

Ah, para! Você tem celular, assiste à TV, entra na internet... Sim, entro. Mas perdi a noção do tempo, fazer o quê? A vida parece filme de suspense, a ansiedade grita a todo momento que não vê a hora que tudo isso acabe. Somos prisioneiros no corredor da morte. Exagero? Não, se você pensar que o inimigo é invisível e você, sua presa, não tem o que fazer, ninguém sabe se ou quando irá contrair o vírus. Não é como na selva, que a vítima sente o cheiro do predador no vento, ouve o estalido de um galho seco numa árvore próxima e tem tempo de correr para salvar sua vida. Muitas espécies até têm um do grupo que fica de sentinela e avisa quando o inimigo vem.

Por outro lado, se a gente pensar filosoficamente: o homem é um ser mortal. Aliás, todo ser vivo é mortal. Portanto, estamos todos no corredor da morte, desde que nascemos. Só que não é bem assim; ninguém quer essa morte matada, cada um quer o direito de uma morte morrida, no seu devido tempo, se possível de causas naturais, e com parentes em volta, depois de muito viver.

Aí vem essa desgraceira toda ceifando vidas indistintamente, condenando-as à solidão no momento derradeiro, sem respeitar classe social, raça ou credo. Bem, ao menos nisso, ela é democrática. Se bem que não serve para nada essa democracia que escancara a injustiça social: os ricos têm mais chances de serem bem assistidos em hospitais cheios de recursos, enquanto os pobres estão jogados ao próprio azar... Ia dizer “sorte”, como manda a expressão, mas que sorte eles têm de viverem na penúria em que vivem?

A quarentena trouxe o inferno de Dante para a maioria – “Abandonai toda esperança, oh, vós que entrais”, e a antevisão do paraíso para bem poucos. Explico: para muitos o medo, a ansiedade, o terror, a corrida para salvar a própria vida, estocando mantimentos e equipamentos de proteção, o oportunismo explorando as pessoas. Para uns poucos, a reflexão sobre os impactos dessa calamidade e a certeza de que dela sairemos renovados, com uma nova consciência do nosso papel no mundo, que é a prática da solidariedade, de um novo olhar para o próximo, que está no mesmo barco e partilha a mesma humanidade. E o principal: a necessidade de estancar a destruição da natureza, se quisermos viver melhor. Respeitar a nossa mãe Terra, que nos acolhe e nos garante a vida.

Todos esses pensamentos povoam minha mente e, confesso, não é fácil manter o equilíbrio no meio dessa balbúrdia – sim, esta é a verdadeira balbúrdia que tomou conta do mundo, e que responde pelo nome de coronavírus.

Para aliviar um pouco a tensão, vou para a garagem, de onde observo, pelas grades da minha prisão, a rua silenciosa. É uma rua estreita e pequena, quase não tem trânsito, ainda mais agora. Olho o céu de um azul mais nítido, sorvo profundamente o ar puro da manhã e penso que, pelo menos, o isolamento social serviu para diminuir a poluição, como bem demonstram diversos vídeos divulgados pela mídia. O mundo inteiro em pânico, mas a natureza renasce, a poluição do ar regride, os ouvidos captam sons dantes nunca notados, o que vem provar o quanto as atividades humanas fazem mal a ela. Nós somos o vírus destruindo a natureza e agora parece que ela só está dando o troco...

Súbito meu olhar se demora na arvorezinha na calçada em frente e vejo muitos pássaros, alguns nos fios, outros nos galhos retorcidos, já que ela está agonizante há tempos – o que me deprime, porque vejo seu lento definhar e não posso deixar de pensar na morte inexorável, aquela de todo ser vivo. A árvore ao menos cumpriu sua missão, e mesmo definhando, nos brinda com suas flores de perfume inebriante, nas noites cálidas. Acho que é dama-da-noite.

Os pássaros, todos de frente para mim, parecem me olhar com divertida ironia: – Viu como é bom ficar presa? Agora você não pode mais fazer suas caminhadas diárias, encontrar os amigos, tomar um café na padaria, olhar vitrines, sair para dançar, visitar uma livraria...

– Triste, não, ficar sem liberdade? – me pergunta um deles, mais ousado.

Dou de ombros.

– Sou livre na imaginação, respondo. E canto, como vocês, mesmo na gaiola. Canto fazendo pão, limpando a casa, lavando roupa... Afinal, quem canta os males espanta. Quem sabe o coronavírus não escute e vá embora? Pois dizem as más-línguas que quando eu canto espanto todo mundo. Inveja, pura inveja. Como a que estou sentindo da liberdade de vocês agora.

Viro as costas e entro em minha cela com fingida dignidade.