Estou cheio!

por João Aranha

11.06.2020

Começo falando da minha experiência pessoal desses tempos de isolamento. Não tenho muita certeza se será útil para alguém, mas para mim será. Espero que outros colaboradores do nosso movimento sigam o meu exemplo e escrevam suas experiências. Livro aberto. Se não toparem volto a escrever. Faz parte da minha natureza.

Estou de saco cheio! Essa é a primeira verdade. Não por ter de ficar em casa, coisa que, de certa forma, já fazia; mas principalmente por ter de me sujeitar às regras desse serzinho invisível que fica o tempo todo dizendo o que devo fazer e o que não devo fazer.

Sinto-me como uma pequena criança cuja mãe protetora passa o dia dizendo lava as mãos, escova os dentes, faz a lição, toma a benção da madrinha, volta pra casa antes de escurecer…

Logo eu que procuro ser, na velhice, um rebelde. Alguém que viu a vida e não gostou, não da vida, mas das pessoas, a grande maioria delas pelo menos. Estou atento aos “porquês” e aos “comos”. Filosofando, dirão alguns.

Feita esta breve apresentação vamos aos fatos, digo, quarentena.

Peço desculpas de antemão pelas reclamações. Sou um privilegiado, tenho boa casa, boa comida, boas roupas (se bem que agora só uso moletom) e uma companheira que geralmente me atura. Mas reclamar, desde que haja — como em tudo — limites, faz parte do meu ser e do meu ter.

Gosto da rotina, principalmente porque posso quebrá-la de vez em quando. Acordo tarde, mas explico. Tenho dormido mal. Tenho um caso complicado com travesseiros. Já comprei dezenas, mas não me acerto. Durmo, ou tento, com dois; tenho refluxo, cerebral e estomacal. Procuro jantar cedo e pouco. No inverno sopa, no verão salada e sempre vinho. Tinto, lógico, por recomendação médica que nunca houve. Uma taça só, que em dias mais conturbados podem ser duas ou, sem que se perceba, três.

O refluxo cerebral é o da memória. Voltei tanto para trás que até me assustei. Lembrei de um tempo que nem falar eu falava, agarrado ao colo de minha mãe, estamos no banco da frente do carro que meu pai dirige, meus três irmãos estão sentados atrás. Minha mãe grita: “você é louco, não passa!”. Há uma ponte de madeira na nossa frente, totalmente coberta pelo rio que virou um grande lago. Meu pai hesita. Chega um pequeno caminhão que resolve passar. A água se espalha um pouco e as bordas da ponte aparecem. Meu pai vai atrás, minha mãe e meus irmãos gritam. Creio que passamos, pois estou aqui. Quantos meses, cinco, seis? Teria tido medo? Não sei. Mas acho que aninhado ao colo da mãe ninguém sente medo.

Café da manhã, a refeição que mais gosto. Se fosse possível tornaria o café da manhã meu almoço e meu jantar.

Chegamos num ponto que muita gente vai dizer que choro de barriga cheia e o pior é que é verdade. Egoísmo, insensibilidade, tens razão; mas não falemos disso agora nesses tempos menos fáceis; deixemos para outra ocasião.

Tento tomar sol. Cada vez mais difícil no inverno que se aproxima. Não que não haja sol, mas são os inúmeros prédios que insistem em bloquear seus raios.

Uso escadas, elevador jamais. (isso porque moro no segundo andar, como seria se fosse no décimo?). Vou ao pequeno jardim no fundo do meu prédio. Nunca tinha reparado que era tão bonito, tão bem cuidado. Tem sol, tem orquídeas e tem som de pássaros. Como passei tanto tempo sem descobrir que essa maravilha estava próximo a mim? Caminho rápido pra lá e pra cá, faço os exercícios que me lembro da academia e do meu tempo de Tai Chi Chuan. Não há ninguém. Vejo no prédio ao lado uma criança que brinca na varanda. Há um banco, sento e medito.

Escada de novo. Tirar toda roupa, deixar o tênis do lado de fora, tomar banho; pagar contas, ler notícias e e-mails, almoçar.

Minha mulher se reinventa na cozinha. Sempre tem uma novidade. Ela que sempre foi muito mais agitada do que eu, deve estar sofrendo mais com o isolamento. Sente falta do seu trabalho voluntário. Cozinha para mim e para as filhas e netas que, nos fins de semana, vêm buscar suas marmitas.

O resto do dia, caros colegas, fica pra próxima. Aguardo os relatos de vocês. Quero aprender com suas experiências.

Um abraço, distante mas junto.


Revisão: Maitê Ribeiro