Rua Joaquim Távora. Ou da távola?

Por décadas não passava por essa rua. Eu a conhecera muitas décadas atrás, e lembrei-me de dois fatos ocorridos nela.

Appio Ribeiro

12.02.2022

Antigo prédio da industria farmacêuticfa Laboratório Climax, SP


O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.


O mais recente foi na década de 70. Fui convidado para a festinha de aniversário de uma amiga, secretária. Ela morava num sobradinho no trecho final, próxima ao cruzamento com a Rodrigues Alves. Fui com minha mulher. Festinha de família, e de família mineira. Portanto, com grande hospitalidade, mesa farta, e muita conversa. Conversa que não se encerrou com o “boa noite”. Era hábito, e inclusive de minha mulher, continuar conversando após as despedidas. E a conversa continuava na porta, na calçada. Como boa família das alterosas, quando eu saia me entregaram um enorme pedaço de bolo, todo enfeitado. Dispensei embalagens para não dar trabalho. E fiquei na calçada, junto ao carro, segurando o bolo, e esperando as conversas se encerrarem e minha mulher entrar no carro. Eu estava acostumado com essas conversas intermináveis após as despedidas. Mas já cansava de segurar a bandeja com o enorme pedaço de bolo. “Só um minutinho”... “Já estou indo”... e o papo continuava. Já era noite alta. E qual a graça disso?

É que, após a enorme espera, entramos no carro e partimos. Paro poucos metros adiante no cruzamento com a Rodrigues Alves, quando uma senhora de dentro de um carro que emparelha com o meu, faz um gesto, aponta, abre o vidro, e eu também e ouço: “moço, o senhor tem um bolo na capota do seu carro”! Meu carro tinha virado um porta-bandeja.

O outro fato. Pouco antes da pandemia, desci na estação Ana Rosa do metro, e segui por uma rua que nem percebi qual era. De repente, olho para um prédio a minha direita, de grande fachada, de dois pavimentos, todo branco.

Foi como um flash que me jogou para o passado, como uma máquina do tempo. E esse tempo era 1959 ou 1960. E aquele prédio branco, agora com as marcas do tempo passado sem conservação, surgiu na minha memória todo branco. E eu com uma correia no ombro carregando uma enorme bateria. A bateria da câmera Arriflex que também descarreguei, e mais vários metros de cabos (fios elétricos), cruzetas e lâmpadas de 500 ou 1000 w. Voltei no tempo. No meu tempo de quando comecei a trabalhar com cinema, com 14 anos, sendo assistente. Assistente de tudo, porque naquele tempo ser assistente era simplesmente fazer o que te mandavam.

Aquele prédio era o Laboratório Climax, um laboratório farmacêutico nacional, que estava completando um aniversário significativo. E eu era o assistente da equipe de filmagem que estava fazendo um documentário cinematográfico, que seria exibido nos cinemas do Brasil, porque uma Lei obrigava aos cinemas exibirem em todas as sessões um “documentário”. Fiquei meio extasiado com a surpresa de estar revendo aquele lugar que nunca mais tinha visto. E as lembranças que nunca pensei que as tinha, começaram a voltar. A escada para o andar superior, o cheiro do lugar, eu carregando os equipamentos, montando o tripé e a câmera, colocando o chassi do filme, colocando as lâmpadas na cruzeta, segurando a cruzeta ao alto da cabeça e apontando para onde o diretor de fotografia mandava (como pesava!).

Agora, junto ao portão havia agora uma segurança privada e, na parede da fachada o numero 822, e uma grande placa dizendo que era de uma Secretaria de Governo, de uma determinada autarquia, e parecia que entraria em obras. Expliquei a ela esse meu passado e meu interesse em apenas olhar o prédio, só isso, e matar saudade. Descrevi para ela como prova do que dizia a escadaria e a sala de reuniões, e nela a enorme mesa de reuniões, de madeira, e a estante e as cadeiras. Ela confirmou, dizendo que a mesa ainda estava lá tal como descrevi, e foi falar com um funcionário para dar autorização para eu ver. A minha esperança em rever aquele pedaço da minha história esbarrou na incompreensão ou descaso da “autoridade” constituída: fui impedido de ver num edifício público, por um funcionário onde nada funcionava, que devia estar muito ocupado. Chupando um lápis. Mas eu vou continuar me lembrando do que faz parte de mim: a Joaquim da távola grande.


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