Das bancas para as telas


Appio Ribeiro

05.02.2022

Foto: Reprodução Internet

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.

Li uma crônica do Inácio de Loyola Brandão no Estadão (*) que me fez lembrar um fato muito significativo para minha vida, ocorrido no antigo Correio Paulistano, em 1959.

Eu estava na redação onde era “Office-boy”. Observava os jornalistas que escreviam nas velhas Remingtons, Underwoods. Eram as velhas máquinas de datilografia, pretas e barulhentas que, ao terem suas tecladas batidas, imprimirem seus tipos - letras tortas, borradas - nas folhas de papel-imprensa. Era o mesmo papel com que era impresso o jornal, meio pardo, meio áspero. Naquela época, o papel sulfite era raro e caro, os tais formatos-padrão, Letter ou A4 nem pensavam em existir.

Entre essas máquinas havia uma Remington diferente. A alavanca do carro ficava à direita e para baixo. E só um redator usava aquela maquina, não sei o por que. Era um senhor (para mim, com 13 anos, todos eram “senhores”, senão velhos, já bastante adultos), que devia ter uns quarenta anos, magrinho, bigodinho, cabelos ondulados, sempre de terno preto com colete, muito simpático e sorridente e me parece que escrevia usando só os dedos indicadores. Achava que escrevia sobre teatro, artes, não sabia bem. Só sei que parecia ser rápido e sempre com pressa. Hoje se diria muito dinâmico.

Certo dia, sem mais nem menos, ele fala pra mim: “Hei, menino, me diz uma coisa: quanto você ganha aqui”?

Surpreso, eu disse a verdade: “setecentos e cinqüenta por quinzena”.

Aí ele me pergunta: “Quer ganhar o dobro”?

Meio assustado respondi de pronto: “Sim. Claro que sim”.

Ele se levanta e me diz: “Então, pega o paletó e vem comigo”.

Em menos de dois minutos, escadas rangentes do Correio abaixo e já estávamos na calçada da Líbero Badaró, em direção ao ponto de taxi. Entramos num carrão preto, antigo, e sentamos no banco de trás, que para mim pareceu um sofá. Ele disse um endereço ao motorista e rodamos por não muitos minutos. O tráfego era diferente, sem tanta contramão, sem muito tráfego. Eu fui reconhecendo: Viaduto do chá, Praça Ramos, (conhecia bem porque ali era o ponto final do meu ônibus), Xavier de Toledo, Martins Fontes (onde tirei a “Caderneta de Menor”). Ele pede ao motorista parar na esquina. Rua Augusta esquina com a Martinho Prado, e entramos no prédio da esquina, Edifício Liberato (ele ainda está lá, firme e forte).

Subimos à sobreloja. Eu sempre o seguindo. Entramos num escritório. Ele me pede para eu esperar numa recepção e entra numa sala. Poucos minutos volta com um senhor, muito elegante, que falava com um sotaque português arrastado, e me apresenta. “Este é o menino” ou coisa parecida. Entendi que à pedido do Senhor português ele estava me indicando para o emprego.

Mal me lembro do que o senhor português me perguntou e muito menos o que respondi. Era muito pra minha cabeça. Só acho que ele disse algo como “se ele está te recomendando eu te contrato”. Incrível. E passei a ganhar mil e quinhentos por quinzena e comecei a trabalhar numa empresa cinematográfica: a Produções Cinematográficas Ricardo Malheiros.

E o que o Ignácio de Loyola Brandão tem com isso? Porque na sua crônica no Estadão (*) escreveu:

“Como era possível ser o símbolo da boemia um homem que circulava todas as noites tomando apenas água mineral? Assim foi Egas Muniz que, incansável e a pé, ia da boate Oasis, ao Michel, Cave, Farney´s, Meninão, Lord, Excelsior, African, e ao restaurante cinco estrelas Baiuca, ao descolado Juão Sebastião Bar, ao Giggeto, jogral, Stardusrt, Captain´s Bar, Champanhota, passando ainda pelo Chicote, Clubinho, Aquela Rosa Amarela, Ela cravo e Canela, e assim por diante, como se tivesse o dom da ubiqüidade atribuído a Santo Antônio. Egas terminava a noite extenuado? Que nada. Magro, corpo de bailarino, o que aliás era, e dos melhores, mudava da rumba para a conga ou o samba com espantosa leveza de um Fred Astaire. ...Egas Muniz era o homem mais conhecido da noite paulistana no final dos anos 50 , início de 1960... Muniz se relacionava com todo mundo artístico, conhecia tudo e todos, a fauna notívaga inteira. Informava, não publicava fofocas ou fake news.

E na crônica Loyola ainda escreve: “... (ele) mantinha desde 1955 a coluna Giro Noturno, no Correio Paulistano, jornal tradicional, falecido. Muniz se relacionava com todo mundo artístico, conhecia tudo e todos...

Eu lhes conto isso porque depois é que fiquei sabendo quem era aquele jornalista magrinho, que me levou do jornal para a produtora cinematográfica e que nunca mais vi. Eu lhe devia um muito obrigado, e agora lhe digo: “muito obrigado, Comendador Egas Muniz, esteja o senhor em que redação estiver”.

PS. A jornalista Thais Matarazzo escreveu o livro “Giro Noturno: Fragmentos das Noites Paulistanas” e o publicou como E-book (Editora Matarazzo; Amazon.com; TopLeituras.com)

(*) O Estado de São Paulo, 14/02/2020, Caderno 2, pag. C6


Revisão ortográfica: Leilaine Nogueira


Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade exclusiva de seus autores e pode não ser necessariamente a opinião do Cidadão e Repórter.Sua publicação têm o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.