Rua Tonelero


Amizade, cidadania, coragem e...


Appio Ribeiro

20.06.2021
Foto disponivel na Internet

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.

No prédio do Romeu de Morais, na altura do número 400 da Rua Tonelero, Vila Ipojuca, funcionou a Escola de Segundo Grau Prof. Manuel Ciridião Buarque, onde completei o Ginásio, nos anos 50. Era o começo da minha adolescência, e passei a estudar de noite. Ela era apenas uma escola. Mas não só ensinava as 13 matérias (isso mesmo: português, inglês, francês, latim, matemática, geografia, história, desenho, ciências, educação moral e cívica, as outras só vendo na “Caderneta”). Ela me ensinou muito mais. Ensinou amizade, das quais recordo até hoje: da linda Jane, com um sorriso incrível. Da simpática Gisele que me apresentou sua família e, através de seu irmão, fui parar na Propaganda. Ensinou acolhimento, no lanchinho antes da aula na casa do colega (que me perdoe não lembrar mais de seu nome) que ficava na mesma rua, onde conheci a hospitalidade mineira: uma mesa sempre posta, coberta com uma toalha, pronta para receber o visitante, a qualquer hora, para o “café de duas mãos”. Nessa época começaram meus bailinhos “pró-formatura”, até a culminância dos bailes de formatura, com a elegância dos black-ties e vestidos longo, e grandes orquestras “ao vivo” como as do Silvio Mazzuca e do Henrique Simonetti. Ótimas lembranças. Porém, nem todas, evidentemente. Triste a lembrança do professor de latim. Nós fugíamos dele como o diabo da cruz. Foi a primeira vez que soube que existia homossexual, naquele tempo tinha outro nome (hoje politicamente incorreto dizê-lo).

Eu gostava da escola. Já trabalhava (comecei aos 13 anos). Do emprego ia direto para a escola e dela saia quase às 11h da noite para ir a pé para casa. Mas, naquela época, as ruas de noite eram seguras. Nessas horas, só bêbados e estudantes circulavam, e às vezes, guardas-civis.

No quarto do ginásio ano eu já fiquei amigo da Coordenadora, do Secretário, o “seu” Walter e até do diretor, o severo Dr. Salim Sedeh. Alguns colegas e eu estávamos sempre dispostos a colaborar com a escola: podem até nos chamar de puxa-sacos. Mas nós gostávamos da nossa escola. Havia contrapartida. Podíamos nos organizar, eles nos apoiavam como para divulgar e organizar os bailinhos e, inclusive, arrecadar para o baile de formatura. A confiança era tanta que a convite do “seu” Walter ajudávamos no trabalho da secretaria. Transcrevíamos as atas das notas dos professores para as cadernetas dos alunos e para as atas da escola. Mais que responsabilidade, era a confiança que recebíamos.

Naquela época não havia o uso da expressão “cidadania” como hoje. Mas certamente muito mais prática.

Fachada do Colégio Romeu de Moraes

Entre os meus colegas, talvez os mais próximos fossem o Ari e o Daniel. Ambos mais velhos que eu, que também trabalhavam e, imagine, chegavam à escola de terno e gravata. O pai do Ari era o “seu” Rossi, escultor, que fez o busto do Olavo Bilac que ficava na entrada do Colégio de mesmo nome. Foi num anti-pasto de almoço em sua casa que, pela primeira vez, tomei um aperitivo. Quando cheguei a minha casa, meus pais perceberam o pilequinho e tive que correr para não levar uma surra.

Certa noite, Ari, Daniel e eu estávamos no pátio, logo após o recreio. Havia uma cobertura em arco, como um ginásio, e num extremo uma parte elevada, como palco e que às vezes funcionava como tal. O seu forro era de placas de aglomerado, tipo Eucatex.

Um barulho chamou a atenção de nós três, que estávamos lá perto. Fomos ver o que era.

Uns três garotos, de nossa idade, e pelas roupas percebemos que não eram alunos (à época a qualificação era “favelados” e/ou “maconheiros”), estavam pulando e arrancando as placas do forro e se divertindo com o vandalismo. Claro que fomos impedir aquela agressão à “nossa” escola. Daniel, o mais intempestivo, gritou para pararem com aquilo e darem o fora. Eles nos desafiaram, demonstrando raiva, valentia e inveja, dizendo “senão o que?”, e vieram nos peitando e chamando de “pó-de-arroz”. “Senão, o que?” repetiu o maior indo para cima do Daniel. A resposta foi o eco do estalido do bofetão na cara do valentão, que o Daniel lhe aplicou com toda força. O sujeito cambaleou aturdido e surpreso com aquela reação. Assustados, e inferiorizados, começaram os três a se afastar, ameaçando que aquilo “não ia ficar assim, que a gente ia se f...”, etc. Sabíamos que por perto (“comunidade” naquela época designava outra coisa) havia certos jovens que, vez por outra, apareciam em frente ao colégio, provocando os alunos e, principalmente, dizendo “gracinhas” e gesticulando para as alunas.

Ary, Daniel e eu voltamos à nossa classe, para as duas aulas finais.

Lá pelas tantas, fomos surpresos pela intempestiva entrada na sala do Diretor da escola, o Dr. Salim (com seu terno bege e gravata preta, sempre elegante). E foi logo dando as instruções (mais ou menos assim): “está havendo uma concentração de malandros no portão de saída ameaçando bater nos alunos quando saírem”. Não sei se era verdade, mas constava que o Dr. Salim era faixa preta. Pouco importa, porque o recado dele foi claro: “ninguém vai bater em aluno desta escola!... vamos sair todos juntos... quando der o sinal (da última aula), vamos nos concentrar no pátio. O portão vai ficar fechado e vamos sair todos juntos. Na frente os alunos maiores e mais fortes. Depois os outros alunos e no fim as alunas. Se eles vierem para cima de nós, vamos reagir e bater. E bater forte, pra valer...”.

O recado estava dado e ele foi assim, de sala em sala, organizando a nossa “defesa”. Não preciso dizer que foi um alvoroço. Alguém teve a ideia de se armar: tirou os dois parafusos que prendiam uma das ripas da carteira, e lá estava um cassetete pronto para o combate. Ansiedade, raiva e medo se misturaram. Quando o sinal bateu e fomos para o pátio, lá estava o Dr. Salim, na frente de todos, junto ao portão.

E quando mandou abrir o portão, ele, o diretor, foi o primeiro a sair, estufando o peito e desafiado com o olhar a turma que ocupava toda a calçada e a rua.

Penso que a surpresa da reação e vendo que os alunos, os maiores e mais fortes à frente, formando um paredão, estavam prontos para enfrentá-los, começaram a abrir passagem e não fazer nada. Quando nós, os menores apareceram com paus na mão, começaram a de dispersar. Dr. Salim, como um guerreiro medieval, peito empinado, ficou junto ao portão, dando cobertura aos que saiam.

Acredito que a escola, assim, me ensinou coragem e cidadania.

E os três pontinhos do título? Os três pontinhos substituem uma palavra que não sei dizer qual. Mas o fato é o seguinte: terminados os exames, aquele grupo de alunos que ajudava a secretaria, estava terminando os registros. Aí, aparece o Dr.Salim, com o seu Walter. Cumprimenta a gente, elogia nossa participação, fala que a escola estava agradecida, enfim, faz uma loa a nós, e diz que ele queria que nós aprendêssemos mais uma coisa. Que nós precisávamos aprender a se comportar em outros lugares e ele queria dar um presente para gente, como encerramento do curso. Convidou para irmos ao seu carro (nos amontoamos e parece que mais um carro foi junto). Para onde? Para a Avenida Paulista, logo após cruzar a Rua da Consolação. Descemos do carro, curiosos e o Dr. Salim nos encaminhou para uma porta, junto à calçada do edifício que acho que chamava Anchieta, e sobre essa porta havia um luminoso que dizia: “Je reviens”. E Dr.Salim ensinou: “Eu queria apresentar a vocês “a noite”. Aprendam sempre a se comportar bem e, quem for menor de idade, nunca beba bebida alcoólica”. E aí eu conheci a noite.

Assim, além das 13 matérias, a escola me ensinou a prática da amizade, cidadania, coragem e...



Revisão ortográfica: Anne Preste


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