No Maksoud Hotel


Nos vinte anos que frequentei diariamente aquela região, eu o vi se transformando


Appio Ribeiro

19.12.2021

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.


Às vezes notícias de jornais me trazem à memória fatos e lugares por onde estive. Dias atrás, foi com tristeza que li: o Hotel Maksoud estava encerrando atividades.

Eu o vi sendo construído, porque de 1966 a 1986 trabalhei na Denison - na época uma das maiores agências de propaganda do Brasil – que ficava na Av. Brigadeiro Luiz Antonio, 2050, no quarteirão entre São Carlos do Pinhal e Alameda Ribeirão Preto, quase em frente à Igreja da Imaculada Conceição, onde - por algumas vezes - eu ia ouvir o ensaio do organista. Mas não vou falar de Igreja.

Vou falar do hotel. Nos vinte anos que frequentei diariamente aquela região, eu o vi se transformando.

Lembro da Avenida Paulista sendo rasgada como por uma enorme trincheira, com enormes colunas de aço sendo cravadas no solo abaixo, na construção do Metrô que Figueiredo Ferraz – então prefeito – iniciara. Isso em 1972. Como já naquele tempo a política era mais forte que o bom senso e contra a racionalidade e contra o bem público, a obra foi paralisada, foi soterrada para – décadas depois – construírem o metrô.

A região estava tendo um boom de ocupação de edifícios comerciais. Entretanto, para falar com os clientes, eu tinha que ir à padaria da esquina (Brigadeiro com São Carlos do Pinhal) fazer a ligação, porque os telefones da Agência nunca davam linha. E quando se tirava do gancho o telefone da padaria, uma telefonista da telefônica atendia e perguntava qual era o número com o qual você queria falar. E era ela quem completava a ligação. Modernidade!

Mas o Maksoud, a duas quadras dali - na Campinas com o São Carlos do Pinhal - marcou época e deixou boas lembranças.

Frequentemente eu ia almoçar com colegas da agência ou clientes, no restaurante do “atrium” do hotel - um espaço cujo pé direito tinha a altura de todos os andares do edifício - o maior pé direito do país.

No térreo ficavam o estar do lobby, o restaurante, o acesso ao bar, lojas e outros serviços. Era uma arquitetura arrojada para a época, e o hotel mais moderno que trazia consigo outras atividades além de hospedagem. Além de diversos restaurantes, bares, salões, o hotel ainda tinha um Teatro e o 150 Night Club.

Como registrou um jornalista, o hotel “tem glamour legítimo, tem pedigree, e estar nele era estar na moda”. Lá no 150 Night Club, se apresentaram Ícones da música, como Ray Charles, Frank Sinatra, Billy Eckstine, Etta James... estes naquela época, e depois muitos outros mitos se apresentaram.

Mas alguns músicos marcaram a minha época de frequentar o Maksoud.

Íamos ao piano-bar para o happy-hour e aproveitar a promoção 2X1 (beba dois, pague um), que valia das 18 às 20 horas, tomar os Kir que estavam na moda. O importante não era a bebida, mas o ambiente do piano-bar.

Aos mais jovens esclareço: naquela época, num “piano-bar” as pessoas se encontravam para bebericar e “conversar”. Sim, conversar. Porque a música que tocavam não impedia de ouvir o que a pessoa ao seu lado lhe dizia. Não se usavam amplificadores, nem caixas de som expelindo centenas de decibéis e os repertórios não contemplavam nem funk, nem sertanejos, nem pagodes. O repertório da época estava mais para Tom Jobim e Cole Porter.

Três músicos que tocavam nesse piano-bar do Maksoud quando eu o frequentava eram excepcionais e nunca os esquecerei.

Um era um quase senhor, moreno, muito discreto, parecia ser muito tímido, introspectivo, mas acabou ficando simpático com a nossa turma, pela atenção que lhe dávamos. Seu piano era romântico, quase melancólico. Era como uma conversa ao pé do ouvido, intimista. No início não o reconhecemos. Depois, bem, depois... soubemos: ele era o Johnny Alf, autor de “Eu e a brisa” - mundialmente famosa – e de dezenas de outras canções, e considerado o precursor da Bossa-Nova.

O outro músico era um trompetista (ou pistonista, como queiram). O trompete – esse instrumento estridente, usado para dar toques militares – com aquele músico era suave, doce. E só era escutado nos limites do barzinho. Tinha a capacidade de tocar em glissando – tocava uma sequência de notas todas ligadas, crescendo e decrescendo no volume. Era uma virtuose. E era de uma simpatia extrema. Alto, magro, moreno, sempre de terno e camisa branca, era um cavalheiro. Seu repertório era surpreendente, porque tocava com seu piston músicas conhecidas pela execução só por piano, violão ou cordas. Desse músico o nome sabíamos. Era o Arakem. Arakem Peixoto. E o seu irmão era conhecido no Brasil inteiro: o Cauby. Cauby Peixoto.

O terceiro músico que deixou lembranças do bar do Maksoud foi o Alfredo. Uma simpatia. Sempre com sorrisos e cordialidade. Magro, elegante, sempre vestido com um impecável “Summer” (um blazer que correspondia a um paletó do “smoking” para o verão). Faço aqui uma injustiça: não sei o nome completo do Alfredo. Só sei que era um craque ao piano. E na simpatia. Ele havia tocado no “Baiúca”, outro bar, na Praça Roosevelt, um dos templos da música em São Paulo dos anos 60.

Sempre procurando agradar seus clientes, Alfredo pedia sugestão de música aos fregueses. E ele conhecia todo tipo de música e as executava com perfeição, fosse bossa-nova, bolero, jazz, tango...

Certa noite ele me pediu uma sugestão. Dizer uma música de que eu gostasse? Pensei nas que conhecia e no estilo do Alfredo. E arrisquei, achando que ele poderia não conhecer. A música que sugeri me marcou quando a ouvi no filme “O prefeito se diverte” (Beau James), com Bob Hope. Eu pedi: conhece “Manhattan”? A resposta foi um arpejo, um acorde, uma introdução e a melodia que eu gostava executada com perfeição.

Alfredo sorriu como que dizendo “viu como eu conhecia”? E a partir daí, toda vez que eu entrava no bar do Maksoud e o Alfredo estava ao piano, ele dava um jeito e introduzia as doze notas iniciais da melodia do Manhattan. Era como um cumprimento, um “boa noite”.

Tempos bons.

Mas que passaram. Passaram-se anos após essa época. Década. Próximo aos anos 2000, atuando em outra empresa, com outros profissionais de outras áreas, um cliente com quem eu tinha boas relações (óbvio né, senão não me convidaria) me convida para a cerimônia de seu casamento. Entregou-me o convite. O casamento seria em São José dos Campos, às 19 horas, num hotel da cidade.

Não me furtei a ir, e com minha mulher.

A cerimônia seria realizada num amplo salão do hotel, montado como uma nave – duas fileiras de cadeira, uma passagem ao meio e uma espécie de altar montado à frente. Tapete. Flores. Ornamentos.

Entramos e procuramos nos acomodar. Silêncio. Apenas o som de um órgão eletrônico preenchia o espaço. De repente, ouço o órgão tocar doze notas de uma melodia que eu conhecia. Sim, eu a conhecia... e era Manhattan.

Olhei para onde estava o órgão e o organista. E lá estava o Alfredo, impecável no seu blazer bege, e com aquele mesmo sorriso que deu naquela noite no Bar do Maksoud.

Tive vontade de levantar e ir abraçá-lo, mas não podia.

Arregalei os olhos para ele como lhe perguntando: “Alfredo! O que você faz aqui?”.

Ele sorriu, meneou a cabeça, ergueu levemente os ombros e tocou os acordes para os noivos entrarem.

Foi a última vez que vi o Alfredo.


PS: Descobri que Alfredo do Nascimento reside em Guadalupe, na ilha do Caribe.


Revisão ortográfica: Leilaine Nogueira


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