Duelo ao pôr do Sol

por Appio Ribeiro

18.01.2021

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.


Cresci num mundo em que nos cinemas, nos gibis, e até nas rádionovelas habitavam heróis. Os heróis eram românticos, valentes, solitários ou galãs, mas tinham algo em comum: não levavam desaforo para casa.

Não me esqueço do Tom Mix, com aquele chapéu de cowboy de copa superalta, nem do Roy Rogers e suas camisas — xadrez ou enfeitada com bordados e tirinhas — mas com lencinho no pescoço, cavalgando a toda velocidade para salvarem a mocinha, nos filmes em preto e branco exibidos no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora da Lapa, todos os domingos, depois da missa das oito.

Como consequência, passei a frequentar as matinês do cine Nacional, na Rua Clélia — um dos maiores cinemas da cidade, com mais de três mil lugares. O prédio era moderno, amplo e pomposo. Na última vez em que entrei, ele tinha se transformado numa casa de shows (onde assisti ao show de um mágico — acho que era o David Copperfield). Depois virou depósito de produtos agrícolas, que pena, e hoje não sei a que serve.

Por vários anos a matinê dos domingos do Nacional excitava a garotada que gritava, assobiava e batia os pés torcendo pelo mocinho. Os adolescentes e jovens também se excitavam, mas com as descobertas dos seus primeiros namoricos.

Esses heróis do cinema povoavam também os gibis — as histórias em quadrinhos — meu pai trazia várias quase todos os dias da gráfica SAIB (depois Editora Abril), onde trabalhava como fotógrafo. E ainda me lembro do Jesse James, do Zorro e do Tonto (que nome!), do Bufallo Bill... e tantos outros nomes me vêm à memória, mas não recordo das suas imagens: Hopalong Cassidy, Durango Kid, Cisco Kid, Kid Colt...

Aos olhos de hoje, esses heróis — fictícios — seriam politicamente incorretos porque se enfrentavam, duelavam e, portanto, matavam. Mas era um bandido contra um mocinho e este defendia uma causa justa, e a luta era em igualdade de condições. Hoje, a violência é abominada só que nesta sociedade politicamente correta os assassinatos acontecem diariamente pelas ruas da cidade, porém sem duelo e sem causa: é assalto, vingança, confronto, bala perdida... Naquele tempo isso seria mera ficção.

Mas, o desfile de heróis que duelavam incluía épocas históricas anteriores. Os filmes também traziam os heróis indômitos dos tempos da cavalaria da Idade Média. Eles nos enchiam de brios cavalheirescos. As suas “justas” eram... justas. E sempre morriam os maus. E os maus não pertenciam aos “Cavaleiros da Távola Redonda”(*), como o “Ivanhoé”(*) e, é claro, na época das cavalarias havia heróis que não usavam armadura, como Errol Flynn, ou melhor, “Robin Wood”(*) — que tinha também gibi com seu nome.

Os cinemas e gibis também me mostraram heróis dos tempos dos Luíses de França — século XVII: Athos, Portos, Aramis e Dartagnan — “Os três Mosqueteiros”(*)... duelavam por prazer contra os soldados do Cardeal de Richelieu. E o “Cyrano de Bergerac”(*), então? Com aquele nariz enorme, uma espada infalível e o romântico charme dos feios?

Até nas emissoras de rádio esses heróis tinham presença. Por incrível que pareça, havia a Rádio São Paulo, que transmitia novelas dia e noite. Só novelas e pra todos os gostos. Só dois programas não eram novela: o de uma “conselheira” de mulheres, chamada Sarita Campos, (nada a ver com as “sexólogas” recentes) e às seis horas da tarde tinha a “Hora da Ave Maria” com um tal de Pedro Geraldo Costa (que virou vereador). Aos sábados à noite havia um rádioteatro chamado de “Teatro de Aventura”, que transmitia novelas clássicas. Foi lá que conheci o Dartagnan, o Cyrano, o Edmond Dantès — mais conhecido como o Conde de Montecristo, o último dos Moicanos, todos na voz de Odair Marzano — o galã da época. Em todas as histórias havia desafios e duelos!

Como dizia minha orientadora em História, ninguém escapa da estética de seu tempo. Sou, portanto, de uma geração ainda romântica e assumo.

Mas, o “Duelo ao Pôr do Sol” do título desta crônica, não tem a ver com o filme de 1946, com o Gregory Peck e a Jennifer Jones. Esse foi o “meu” duelo. Duelo por defesa da “minha” honra. E foi assim que aconteceu:

Eu tinha dezessete anos e estava namorando há poucos meses com a moça pela qual me apaixonei e, apaixonados, nos encontrávamos todos os fins de semana, e também às terças e quintas (essa era a praxe da época). Eu passei a frequentar os seus grupos sociais e ela os meus. Ora íamos aos bailinhos do meu bairro, ora aos do bairro dela. Frequentando juntos os nossos amigos eles se tornaram nossos amigos comuns. Natural. Quanto a nós dois, ficamos inseparáveis desde que nos conhecemos.

Certo dia, ao encontrá-la, percebo-a tensa, indignada. Disse-me que precisava falar comigo algo sério. Preocupei-me, é claro. Do que se trataria? Ela, então, contou-me que, ao sair do seu trabalho, encontrou um colega meu, que parecia estar a sua espera. E ele lhe fez uma declaração que ela custou a entender. Ele disse que estava apaixonado por ela, que não conseguia ficar sem pensar nela e lhe entregou uma caixinha. Ela ficou mais surpresa ainda e ele foi embora, sem dar chance de ela dizer nada.

Tensa, com raiva, ela me entregou a caixinha. Dentro tinha um anel. Ela não precisou explicar que nunca tinha dado a menor atenção àquele sujeito, que ela estava indignada, pois simplesmente indo embora ela não teve chance de dizer o quanto ela reprovava aquela atitude nem pode devolver na hora aquela caixinha.

Ela considerou aquilo uma ofensa e um desrespeito. Meu sangue ferveu. Aquilo não ficaria por isso mesmo. Discutimos porque ela queria que eu ignorasse o fato, pois tinha certeza que minha reação seria de vingança. Como nos filmes de espadachim, aquela atitude traiçoeira de um colega, ainda mais sabendo que eu era apaixonado, foi como uma bofetada com a luva: o símbolo do desafio para um duelo.

Dois ou três dias após, cordialmente, marquei um encontro com o sujeito, para o fim da tarde. E como sempre há o lugar onde as coisas acontecem, marquei de encontrá-lo no ponto do ônibus, junto ao Colégio dos Padres, na Rua Pio XI, que hoje é a Praça Dr. Antônio Bento Garcia. Na época, era apenas um bosque, com algumas árvores e capim pelo chão.

Quando cheguei, ele já me esperava, com a cara mais lavada do mundo, como se nada tivesse acontecido ou feito. — “Oi, tudo bem?” — me fez um cumprimento banal.

O sangue me subia pelo pescoço. Eu sentia minhas veias latejarem. Ódio e ciúmes se misturaram e clamavam vingança. Olhando para aquela cara impassível pensei: quanto cinismo, que cara de pau, que grande filho da... , como pensa que pode me enganar? Ele está achando que ela não me contaria imediatamente o que ele fez? Como pode um sujeito ser tão pulha?

A minha resposta àquele cumprimento foi tirar do bolso e mostrar-lhe a caixinha com o anel dentro, e responder ao seu cumprimento:

— “Seu canalha!”

A reação dele foi de surpresa. Não esperava. O idiota achava que eu não saberia de sua canalhice. Continuei a lhe dizer os adjetivos que minha indignação e ódio me ditavam.

— “Seu traidor de m..., quem você pensa que é..., calhorda..., cachorro..., salafrário..., safado..., miserável, e filho da...” aos montes.

A cada palavrão que lhe gritava eu lhe dava um safanão, para que ele reagisse. Queria enchê-lo não de palavrões, mas de porradas. O desgraçado não esboçava nenhuma reação. Covarde, com os empurrões que levava foi recuando e acabou se encostando numa árvore. Ficou de braços caídos. Não tentou se defender. Xinguei-o de tudo. De cabeça baixa, ele não conseguia me encarar, nem dizer nada.

Meti a caixinha na cara dele dizendo: — “reage, seu canalha!”. Ele não esboçou um só movimento. Continuou calado, cabisbaixo.

— “Você é um m... mesmo. Suma, nunca mais apareça na nossa frente”. Concordou, e meneando com a cabeça baixa foi saindo. Dei-lhe as costas. Era um covarde.

Os meus heróis dos quadrinhos e do cinema não matavam indefesos e desarmados. Eu não consegui espancar quem não reagia.

E assim, sem sangue e sem mortes foi a minha justa, o meu duelo. O meu “duelo ao pôr do sol”, na Pio XI.

Nessa época eu trabalhava na Agência McCann-Erickson, atendendo a Kolynos. Meses depois, para enfrentar a concorrência que patrocinava a série Bonanza, fechamos com a Kolynos o patrocínio no Brasil de uma famosa série da televisão americana, um faroeste, cujo título era “The Virginian” - O Homem de Virginia. O nome daquela minha namorada e minha mulher por mais de meio século? Vergínia!

(*) – Título de filmes da época.
Revisão ortográfica: Maitê Ribeiro