“Dentro de mim, existem desejos que não dormiram”

De três textos incompletos para uma vida de desejos barrados, mas não interrompidos

Bruna Antonelli

30.10.2021

Dia 19 de outubro, uma terça-feira, em meu nome home-office na casa nova, com minha vista nova (que, aliás é linda) me sentei e comecei a escrever sobre algo que há tempos vem me atravessando. Coloquei o título, escrevi um parágrafo, apaguei, escrevi outro parágrafo, apaguei, escrevi novamente, apaguei. Abri um novo documento, troquei o título, escrevi e apaguei. Mais um documento, outro título e nada. Pausa. Café e um docinho. Voltei. Mais uma pausa. Almoço. Café. Voltei. Mais uma vez, nada. Talvez não fosse o dia.

Dia 21 de outubro, acordei às 06h30, caminhei, tomei café, atendi um paciente, voltei nos textos, mais uma vez nada. Mais café. Mais angústia. Eu queria tanto falar sobre aqueles temas. Na minha cabeça os três temas eram diferentes, mas agora pensando, todos estão interligados. Pausa mais uma vez. Pensei em mandar mensagem para o pessoal do jornal e dizer: “olha, eu estou em surto e não consigo escrever” ou “olha, eu sabia que não conseguiria dar continuidade a essa função que propus fazer com vocês, então estou saindo” ou “lembra que falei que seriam textos quinzenais, podem ser mensais? É melhor para minha neurose” ou “não haverá texto essa semana, obrigada pela compreensão”. Pausa. Não queria me precipitar. Fui para minha análise.

Sentada na sala de espera conversei com minhas amigas do porque quando estamos fazendo algo que gostamos ou quando temos uma ideia e essa ideia uma ânsia nos desperta, porque não conseguimos concretizar? Ali no grupo surgiram especulações: será que nos sabotamos? Será que tem desejo nosso envolvido mesmo?

Entrei na sala de análise. Minutos em silêncio. Queria falar sobre toda essa angústia, não conseguia. Falei sobre outra coisa. Rodei, rodei, rodei e concluí: não era o dia que não estava propício para a escrita ou as muitas pausas feitas para talvez respirar e descansar. Era só mais uma forma de pausar minhas vontades e meus desejos. Minha analista me pergunta então: há algo que você olhe em seu processo e foi algo que você quis muito e se concretizou? Pasmem, mas não. Tem um processo todo de desejos barrados e pausados.

Todos os outros títulos eu queria escrever sobre os nossos próprios desejos e do quanto fugimos deles, do quanto procuramos nos outros quais caminhos percorrer, procuramos as respostas de nossas vidas, o quanto não escutamos o que vêm de nós e do quanto tentamos realizar outros desejos que não os nossos. Por coincidência, me lembrei de uma aula que assisti sobre ciúme, onde a psicanalista que ministrava disse que o tempo todo, nós criamos álibis para não nos haver com nosso próprio desejo. Lacan já nos pontuava em seus escritos: “Agiste conforme o desejo que te habita?” Bom, vocês podem perceber que eu não.

Não sinto que seja um encerramento e não quero que seja, mas gostaria de parafrasear Rupi Kaur quando em um trecho do livro Meu Corpo, Minha Casa ela diz: “dentro de mim, existem anos que não dormiram”, portanto coloco: “dentro de mim existem, desejos que não dormiram”.


Revisão ortográfica: Anne Preste


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