Cine Nacional ao vivo


Você já sentiu vergonha por ter feito alguma coisa? Qualquer coisa, mesmo que ocorrida num passado longínquo?

Não, não precisa ser algo como um pecado ou algo imoral. Apenas algo que, quando você se lembra se sente meio ridículo?

Você nunca deu algum fora, ou falou alguma bobagem sem pensar... Não?

Então você é quase anormal. Eu sigo a regra.


Appio Ribeiro

26.06.2021
Fachada do Cine Nacional na época do relatado na crônica.

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.

Durante muito tempo, aquilo que vou contar me incomodou. Sentia um certo vexame.

E como tudo acontece em algum lugar, este aconteceu na Rua Clélia, mais precisamente no Cine Nacional. Ou melhor, culminou acontecendo no Cine Nacional.

E não foi em nenhuma das famosas matinês dominicais, onde adolescentes se iniciavam nas artes do namoro.

Na verdade, começou no Grupo Escolar. No Pereira Barreto.

Chegava o fim do ano em que eu completava oito ou nove anos, não me lembro ao certo. E como hoje, naquele longínquo ano de 1953 ou 1954 (não importa) também as escolas faziam as festas de fim de ano. Eram simples, no pátio mesmo, alunos exibiam seus talentos artísticos. Uns declamavam, outros cantavam, outros tocavam. Ou em solo, em duplas ou em conjuntos. Mas nesse ano (acredito que no segundo ou terceiro), a escola resolveu fazer uma festa mais organizada.

Só sei que minha mãe foi convocada para uma reunião recebendo instruções para os preparativos. Com minha mãe, fui a uma loja na Barão de Jundiaí, que ela disse ser “a loja de armarinho”. Para surpresa minha não vi nenhum armário pequenininho, só balcão e prateleiras. Até hoje estranho esse bendito nome, apesar de quase não existirem mais essas lojas de “aviamentos”. Ela comprou botões, elásticos, telas, forros... que constavam de uma lista.

Em casa ela tomou minhas medidas, fez moldes, cortou pano e ia confeccionando algo que me parecia estranho. Lembro de uma coisa curiosa: ela se pôs a tingir uma de suas meias de nylon. E de verde. Recortou uns pedaços de papelão grosso, e recobriu-os com um tecido verde, que brilhava. Era de cetim.

No Grupo Escolar, no horário de aula íamos para o pátio e ensaiava uns movimentos, prá lá, pra cá... andando em fila, dava mãos, soltava mãos, rodeava umas cadeiras colocadas em marcações no chão, e uma professora ficava dando instruções e batendo palmas ritmadas, contando “um, dois, três, um, dois, três...” e a gente acompanhava, mentalmente: “um, dois, três, um, dois, três, ...”

Aí, chegou o dia. Fui vestido, ou melhor, “fantasiado” com uma roupa estranha. Um “macacão”, de pernas curtas, em cima só tinha na frente, e atrás duas tiras vinham da cintura e se abotoavam no peito da roupa, como suspensório. Era tudo de cetim verde. E de cetim verde eram aqueles papelões cortados, que tinham agora formato de folha e recobertos por cetim verde. Uma “folha” em cada tornozelo presa com elástico... Em cada braço, em cada pulso, mais folha de cetim verde, presas com elásticos... verdes. E aquela meia de seda da minha mãe tingida de verde? Virou um gorro, colocado em minha cabeça, e que também ostentava uma grande... folha verde. (Nunca pensei porque sou palmeirense. Teria sido um trauma de infância)?

Platéia do Cine Nacional na época do relatado na crônica.

Pois bem, no dia da festa, a apresentação foi no palco do Cine Nacional. Sim, havia um grande palco, com coxias e tudo. E uma plateia com dois andares, com mais de duas mil pessoas. Sei por que lá estava eu, fantasiado, verde dos pés à cabeça.

É curioso como lembramos de coisas. Lembro do cheiro daquele lugar, algo como mofo, mas seco. Não era bom, mas não era ruim. Vêm-me sensações. Como a aceleração do coração. E lembro-me da menina, toda de amarelo e laranja, com véus de tule, sentada numa caixa, que substituía uma daquelas cadeiras do ensaio. Ela era bonita, estava maquiada, me deu atenção, falou comigo... emoção! Penso que foi a primeira aceleração cardíaca diferente... por uma “borboleta”.

A professora que nos ensaiava coordenava a nossa formação na coxia, dando as últimas instruções.

As cadeiras estavam substituídas por caixas decoradas. No chão, marcas de giz indicando nossa trajetória. Uniformes das meninas trocadas por fantasias de flores e abelhas.

E aí... Aí, por todos os alto-falantes, num volume altíssimo, soam os primeiros acordes da Valsa das Flores de Tchaikovsky.

E da coxia esquerda do palco sai, ao ritmo do, um, dois, três da valsa, puxando uma fila de garotos da mesma idade e tamanho, balançando o corpo para um lado e para o outro, entra em palco... este que vos escreve. Eu e meu grupo personificamos a trepadeira que, dando voltas pelo palco, íamos entrelaçando as flores (as meninas) que ocuparam as caixas. Aí, saudamos a borboleta que “pousava” sobre todas as flores e folhagens. Era boazinha, amiga, era aquela menina de amarelo e laranja que me balançara o coração. E depois fugiam do besouro, marrom e preto, que ameaçava as flores. Mas nós as protegemos. Esse era o “enredo”.

Ao acorde final, puxei a fila para a ribalta e agradeci os “enormes”, “efusivos” e, sobretudo, “descompromissados” aplausos dos pais, mães, avôs, avós, tios, tias irmãos e irmãs daqueles “bailarinos”. Dobrei-me até quase os joelhos. Duas, três vezes... e os aplausos se perpetuaram em mim.

Mas, vestindo calça de brim “Far-West”, com a barra dobrada para fora, sapato de duas cores, camisa de gola levantada, jaqueta vermelha de punhos pretos e Gumex no topete do cabelo, menos de uma década depois, eu estava indo às matinês naquele mesmo lugar, já com os namoricos se ensaiando. E quando me lembrava daquela apresentação, vestido de cetim, todo verde e cheio de folhas, eu me sentia vexado. Eu me via como um pé de couve!

E até hoje, quando ouço os acordes da Valsa das Flores, todas essas cenas voltam.

Nunca contei este episódio pra ninguém. Hoje contei. E daí? Eu perdi a vergonha.

E o País perdeu um Baryshnikov.



Fotos: SALAS DE CINEMA DE SÃO PAULO: 2015

Revisão ortográfica: Anne Preste


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