Ao mestre com carinho


Aquelas ruas cheias de estudantes sempre testemunham o nascimento de muitas histórias de vida. Histórias de amizades, de coleguismo, de solidariedade. Para os professores, ficam memórias emocionantes de gratidão e carinho. O futuro dos alunos é o objetivo do ensino. E o futuro pode também reservar ao mestre hilária forma de gratidão. Mas sempre, ao mestre com carinho!


Appio Ribeiro

26.05.2021
Foto: LuckyBusiness Photo Studio

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.

Fins dos anos 80. Além de trabalhar em agência de propaganda, eu dava aula de planejamento da comunicação na Faculdade de Administração de Empresas da Universidade São Judas Tadeu, que fica na Rua Taquari, na Mooca. Foram vários anos lecionando para alunos do 3º e 4º anos de Administração, e alguns também de Economia.

Como curso noturno, havia muitos alunos que já trabalhavam. A maioria em início de carreira, outros mais velhos procuravam se qualificar para ascender na área que já dominavam. Mas havia muitos que ainda buscavam o primeiro emprego. Na verdade, era uma busca de estágio. Na época, os alunos tinham duplo sofrimento: era difícil conseguir estágio e, por outro lado, era obrigatório apresentar comprovação de estágio na área para poder se graduar.

Foi uma época cansativa com muito trabalho na empresa durante o dia e, à noite, lecionando. E nas folgas, em noites ou nos fins de semana lia e corrigia avaliava uma pilha de provas. Como todo professor, mas compensadora. Foi a época em que sentia estar dando minha contribuição para a formação daqueles jovens, e retribuindo o que havia recebido dos meus professores. E, é claro, pelas muitas demonstrações de consideração que recebia.

Conversava muito com os alunos fora das aulas. Muitos vinham buscar conselho profissional. Outros, até mesmo pessoal. Eu ouvia estórias, as mais diversas. E me perguntavam de tudo. Lembro-me até de um aluno, acanhado, me perguntar por que “bode expiatório”? O que queria dizer? Claro que expliquei. Não imolado naquela dúvida. Outras contavam seus casos de família e desencontros amorosos. Sentia que ouviam de mim o que gostariam de ouvir de seus pais. Tive o prazer de entregar, em solenidades de graduação, o diploma a um aluno que sofria de distrofia muscular, mal conseguia escrever e falar, mas entendia tudo o que ouvia. E de outra, que havia convencido a não abandonar o curso, ao lhe entregar o canudo, ouvir dela: “Este devo a Você, mestre”. Fui feliz e gratificado com o carinho que recebia e a confiança que despertava. Até quando chegava à lanchonete o garçom pedia o sanduíche que eu inventara: aí, sai um sanduíche do mestre (Um pão de queijo com uma fatia de provolone e uma de salame, aquecido na chapa). Havia um aluno que sempre me falava da sua noiva. Não só para mim, mas para todos. Até que uma amiga íntima (dele) me explicou: não havia nenhuma noiva. Era uma fantasia, despiste. Na época o mundo não era tão “colorido”. Os alunos, como sempre, não perdoavam seu jeito. Ele sofria o que hoje seria bullying. Na época, era chacota mesmo. Eu não o protegia, mas não aceitava que fizessem gozação com ele. Exigia respeito para com todos. Muitos alunos vinham me contar seus problemas e me pedir conselhos. Eu podia opinar, mas dar conselhos eu dizia que não dava. Que analisassem o problema, que avaliassem as alternativas possíveis de solução, e decidissem. Foi um tempo cansativo, mas compensador.

Algum tempo depois, deixou a agência de propaganda e passou a prestar assessoria em marketing para alguns clientes. Um deles tinha a sede na Rua Capital Federal que começava Av. Afonso Bovero e segue pelos altos e baixos do bairro do Sumaré. Era uma empresa de tecnologia, com a qual eu colaborava desde sua criação, e que trouxe para o Brasil o então inédito código de barras.

Certa vez o meu amigo dessa empresa pediu para eu acompanhar as suas equipes, da área técnica e de vendas, a uma reunião com uma nova empresa “Log.”, ligada a uma empresa aérea. Foi a época em que começaram no Brasil as empresas “Log”. E a logística seria, então, um mercado promissor para os sistemas de captura eletrônica de dados desse meu cliente. (Hoje a “logística”, oficial, está um tanto desprestigiada nesta pandemia).

A reunião seria com o presidente da Companhia e com todo o seu staff. O desempenho nessa reunião era muito importante para o desenvolvimento dos negócios do meu cliente.

E lá fui eu com essa equipe para a reunião: o local era um grande edifício, junto ao Aeroporto de Congonhas. É natural haver certo clima de tensão antes de uma reunião importante. Meus companheiros não eram exceções. Esse prospect era muito importante, e a expectativa era de que seriam feitas inúmeras arguições, sobre equipamentos, sistemas e processos. O meu papel seria o de (com a minha experiência) tentar conduzir a pauta e evitar ou amenizar eventuais divergências. Não tinha o conhecimento técnico, apenas certa habilidade nos relacionamentos e nessas situações.

Tensos na sala de espera, fomos convidados a entrar. Como de hábito, dei a vez para que todos entrassem primeiro, e eu entrei por último. A sala era grande, uma mesa de reunião retangular, com umas duas dezenas de cadeiras, metade das quais já ocupadas. Todos sérios.

Assim que entro, vejo se levantar de uma das cadeiras um jovem que veio ligeiro em minha direção, com os braços abertos, com muitos trejeitos, e me dá um abraço apertado, exclamando: — “Meu mestre, mestre querido!”. E, virando para seus companheiros, lançou o elogio: “Tudo que sei, devo a ele que ensinou tudo!”. Arco-íris. Senti meu rosto ficar um arco-íris, mas do vermelho para o roxo. Quem me abraçava era aquele meu ex-aluno, que, pelo visto, abandonou a noiva que nunca existiu, e estava bem encaminhado na carreira profissional. Dispenso contar que, com isso, quebrou-se aquele clima de tensão e a reunião foi um sucesso. O prospect se tornou Cliente. E dispenso contar o quanto de gozação tive que aguentar durante muito tempo, ouvindo meus amigos me perguntarem: “De que matéria, mesmo, que você deu aula, hem?” E, pior, aguentar o sorrisinho malicioso...

Hoje, passar por aquele prédio de Congonhas, ou pelo Sumaré, ou ainda lá perto da Taquari, me trazem lembranças, gratas e divertidas.

Certamente você também deixou pedaços de sua história por onde andou. Basta lembrá-las. Os lugares estão lá.


Revisão ortográfica: Anne Preste