A descoberta de um novo mundo na Líbero Badaró

Naquele prédio velho eu não me sentia mais criança. Eu me sentia um jovem.


Appio Ribeiro

23.10.2021

Prédio do jornal Correio Paulistano. São Paulo, 1910. Aurélio Becherini / SAN/DIM/DPH/SMC/PMSP

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.

Eu tinha 13 anos. Cursava no diurno o primeiro ano do ginásio. Ginásio particular, pago. Observava o peso das dificuldades financeiras de meu pai com as escolas. Decidi: vou trabalhar. Mas a que horas? Decidi também: vou estudar à noite. Na época os menores de idade podiam trabalhar. Não só podiam como deveriam. Era a moral da época. Um dia comuniquei em casa: “eu me matriculei no noturno do colégio do Estado e vou trabalhar durante o dia”. Surpresa, desaprovação por não pedir autorização e pela ousadia da independência precoce, mas aceitação. Afinal, era para o bem de todos. Aí, sabendo que eu procurava emprego, um colega do ginásio (depois foi meu padrinho de casamento), que já trabalhava e ia mudar de emprego, se ofereceu para me apresentar para substituí-lo. E assim, um office-boy me apresentou ao jornal que foi o primeiro jornal diário de São Paulo e meu primeiro empregador: o Correio Paulistano. Uma só entrevista e fui contratado. Comecei no dia 6 de fevereiro de 1959. Já nessa época o jornal funcionava num prédio velho na Rua Líbero Badaró, n.º 661, já quase junto ao Largo de São Bento. Nessa rua era a entrada e vários andares abaixo (ligados por escadas de madeira que rangiam feito navio fantasma) ficavam os andares das oficinas. E, o mais inferior, dando para o Vale do Anhangabaú, era o piso com a rotativa de calandra quente e por onde saiam os exemplares (e era a entrada das bobinas de papel).

Era office-boy da diretoria e da redação. Eu não tinha nome, só apelido. Para o dono do jornal, o Sr. João de Scatimburgo, eu era “menino!”. Para o Secretário de Redação, o Sr. Péricles, eu era “periquito”, apelido que herdei do meu antecessor.

Gradualmente descobri o que havia naquela rua e nas imediações, e descobri onde ficava e o que fazia cada setor do jornal naquele velho prédio de vários andares. Eu me sentia um Colombo: descobria um novo mundo.

Meu “velho” mundo era muito pequeno: família, a igreja e a escola. Num repente, meu “novo” mundo era feito de máquinas (de escrever, de linotipar, de caixas de texto, de calandras, de telhas de chumbo, de rotativa, de telefone!), de novas atividades (de escrever, de revisar, de compor, de imprimir, de analisar), de novas funções (dono, diretor, secretária, chefe de redação, diretor de redação, repórter, fotógrafo, chefe de reportagem) e, sobretudo de novas palavras, novas ideias, novas personalidades!

Quando eu ouvia “menino!”, corria para a sala do Seu João, que me pedia para levar ou buscar algo. Entre elas, levar seus sapatos de cromo alemão para o engraxate que ficava na calçada ao lado do prédio. Muitas décadas depois, depois inclusive de eu já ter sido diretor comercial de outro jornal paulista, ao ler que o Dr. João de Scatimburgo realizaria uma conferência, não resisti e fui assistir. Ele já idoso foi brilhante. O evento foi na Academia Paulista de Letras, no Largo do Arouche. Ao final da conferência entrei na fila dos cumprimentos. Ao abraçá-lo, cumprimentei-o e, discretamente ao seu ouvido, lhe perguntei: “Doutor João, o senhor não quer que eu leve seus sapatos ao engraxate?”. Ele se surpreendeu. Evidente que não me reconheceu. Porque haveria de? Mais de trinta anos haviam passado. Mas certamente imagens daquele passado lhe vieram à mente. Não se apagaram. Como não se apagou da minha mente até hoje o meu constante sobe e desce pelas escadarias do velho prédio. No térreo, o atendimento ao público, e a administração. No primeiro andar, a sala do Dr. João e a ante-sala que ao lado ficava a D. Mafalda, secretária, uma senhora com suas meias de nylon grossas sempre caindo e que maternalmente me tratava de meu bem.

Depois, a sala da Direção de Redação (onde ficava o Doutor Nabor, que pelo sobrenome - Caires de Brito) sabia ser meio parente de tio meu, da Bahia. Mais uma sala, o Secretário da Redação: Dr. Péricles, que me chamava “periquito”. Ao final do corredor, a “grande” sala da redação, não mais que 10 mesas, pelo que me lembro. À mesa da frente, ficava o Chefe de Reportagem, Caiubi de Oliveira, que atuava também no Última Hora, que ficava ali pertinho no Vale do Anhangabaú, um jornal oposto ao Correio, moderno, matutino, vibrante que nem o seu Caiubi. Ah! E impresso em duas cores, preto e azul.

Jornal Correio Paulistano, em 1960, a inauguração de Brasília (imagem: Correio Paulistano/Biblioteca Nacional Digital) Fonte: Agência Senado

Naquele mundo novo, e admirável para mim (eu nem imaginava existir o do Aldo Huxley e seu admirável mundo novo), tinha o Professor Nunes, que fazia a coluna de religião. Na redação, todos escreviam naquelas folhas de papel pardo, o papel-jornal. Porém, todos escreviam com as máquinas de datilografar. Mas o Prof. Nunes não. Ele só escrevia à mão, e com uma caneta de pena de molhar! Pior: não usava tinta de caneta. Ele fazia a sua própria tinta, retirando a grafite de um tipo de lápis usado na época para realizar desenhos técnicos (plantas de casa) e que soltava uma tinta roxa quando molhado. Ele raspava aquele grafite no tinteiro e colocava água. Dizia que assim escrevia melhor. Porém, eu tinha que levar seus textos para um determinado linotipista, pois era o único que conseguia entender o que estava escrito. Lembro da caligrafia dele até hoje. E também da cor vermelha do lápis, do Dr. Péricles, corrigindo os textos dos redatores antes de ir para a composição. Eu pensava: como ele podia saber tanto para fazer os textos melhor do que tantos? Entre esses tantos havia pessoas que me marcaram.

O “seu” Getúlio, um senhor que se parecia com meu avô. Alto, de suspensórios, sempre com um sorriso maroto. Não lembro para que seção ele escrevia. Só lembro que algumas vezes algumas sobrinhas iam buscá-lo. E só com algum tempo comecei não a entender, mas desconfiar porque os colegas sorriam quando diziam “sobrinhas”.

A Rua Líbero Badaró já era toda tomada por prédios antigos, pois ficava onde chamavam “centro velho”. Velho como o Mosteiro e a Igreja de São Bento bem ao lado. Eu não tinha relógio. Nem precisava. O carrilhão da Igreja marcava as horas para mim... e para boa parte da cidade. E essas horas passavam rápido. E rápido era o chefe de reportagem distribuindo ordens e cobrando, e mais rápido ainda era um repórter, jovem, alto, forte, cabelos encaracolados, com folhas do papel jornal dobrado em três pelos bolsos, e sempre reclamava ser o único repórter que tinha que se virar e para fazer reportagem tinha que conseguir um táxi, e nem sempre tinha o dinheiro para pagar. Seu nome: Ferreira Neto.

Outra personagem inesquecível: Dona Irene de Bojanô. Sempre com uns óculos diferente, ela fazia a coluna social. Foi ela quem me ensinou o “quem – quando – onde – como - porque” e me ajudou a escrever a primeira minha notinha que foi publicada. Era sobre o futuro casamento de uma Matarazzo. Décadas depois, sem saber, contratei com seu filho, Alarico. E por acaso, descobrimos essa relação com sua mãe. Ele promoveu um almoço para eu reencontrá-la. Eu, aquele Office-boy menino estava como comensal daquela grande dama que me ensinara o bê-á-bá da redação.

Mas, naquele prédio velho eu não me sentia mais criança. Eu me sentia um jovem. Afinal, eu já ganhava dinheiro (setecentos e cinquenta cruzeiros!) e com ele podia pagar o ônibus para ir trabalhar e, ocasionalmente (muito ocasionalmente recebia) poder ir à leiteria (padaria) que ficava ali mesmo na Líbero Badaró, e poder me deleitar com um pão doce com creme e tomar um copo de leite com groselha.

Anos antes, quando eu ainda usava calças curta e tinha uns cinco anos, meu pai me levou para conhecer o centro da cidade. Ele me levou até uma salsicharia, na Av. São João, na subida do Anhangabaú para a Praça Antonio Prado, na calçada do prédio Martinelli. Ela não tinha nome. Só um luminoso de neon, com dois porquinhos que se movimentavam e esticavam uma fieira de salsichas. Eu a chamei de Salsicharia dos Dois Porquinhos. Pois bem. Senti orgulho mesmo quando, agora trabalhando, eu podia voltar lá e comprar “com o meu próprio dinheiro” um lanche de salsicha com molho. E com “duas” salsichas! Isso foi tão marcante que daí por diante, nas quatro décadas seguintes e até ela fechar, toda vez que eu recebia uma promoção, subia de cargo, melhorava de vida, eu ia lá aos Dois Porquinhos, comer um lanche de pão com salsicha, como num ritual para jamais esquecer minhas origens e não deixar nunca o sucesso subir à minha cabeça. Graças a Deus ele nunca subiu. Se tivesse subido eu não acalentaria tantas dessas memórias, daquele novo mundo na Líbero Badaró.


Revisão ortográfica: Anne Preste


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