Um bonde chamado desespero

por Appio Ribeiro

06.06.2020

Bonde bidirecional 551 na linha 17 Largo Pompéia - Praça do Correio. O local da foto é o Largo Pompéia, ponto final da linha. A linha foi extinta em 11/2/1962. Foto: Bill Janssen, 21/1/1957, Tramz.com

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.)


Curiosamente, até hoje a Rua 12 de Outubro ainda me surpreende: há poucos dias (tempo presente: coronavírus, máscara, quarentena, isolamento e etc.) recebi uma ligação. Era o Ary Rabelo, amigo que conheço desde 1963. E para minha surpresa, ele disse que, ao ler minha crônica anterior neste Cidadão e Repórter, lembrou-se do tempo em que morou na Rua João Pereira, que seu irmão frequentava o Pereira Barreto na mesma época que eu, e que seu pai tinha a loja de bolsas e artigos de couro, a Loja Beatriz, na Rua 12 de Outubro, alguns metros depois da loja de vitrines premiadas que descrevi. O que é curioso? Apesar de nos conhecermos há mais de 50 anos, somente ontem soube dessa nossa proximidade. Graças ao Cidadão e Repórter.

Mas o que interessa é que em frente à Loja Beatriz do pai do Ary passava o “bondinho”, que saía lá de baixo da Rua Guaicurus, subia por toda a 12 de Outubro, virava à direita na Rua Barão de Jundiaí, continuava pela Rua Gavião Peixoto e ia balançando sobre os trilhos até a Vila Anastácio.

Era daqueles bondinhos abertos, que tinha os estribos de ambos os lados, por onde se subia apoiado nos balaústres verticais de madeira, evidentemente ensebados, que a gente agarrava para subir ou descer. Subindo alcançávamos os bancos, de tábuas no assento e encosto, que iam de uma lateral a outra. Podia-se subir (e descer) por ambos os lados.

Como não tinha portas era chamado de “bonde aberto” e, é claro, também não tinha janelas. Por isso, estranho um pouco passageiros reclamarem da temperatura do ar-condicionado dos coletivos de hoje, ou da escolha das músicas do som ambiente...

O motorneiro, fardado, “dirigia” o bondinho, ou seja, acelerava e freava. Só isso. O caminho quem fazia eram os trilhos.

Eu estudava no Colégio Olavo Bilac, que ficava lá em baixo, no último quarteirão, defronte ao cinema Carlos Gomes (aquele do tiro), na primeira série do ginásio – graças por ter passado no Exame de Admissão. Isso mesmo. Era como um vestibular de hoje para se entrar no 1º ano do ginásio, o que seria a atual quinta série. (Por isso, eu hoje também estranho a tal “progressão continuada”, aquela que na prática o aluno passa de ano sem prova de aprendizado).

Nesse primeiro ano de ginásio eu tinha Português, Matemática, História, Geografia, Latim, Francês, Desenho, Trabalhos Manuais, Canto Orfeônico, e mais uma ou duas que não lembro e não achei a minha “caderneta” para conferir. (Por isso, estranho o tão reduzido currículo “puxado” dos meus netos...)

Aí, no primeiro ano do ginásio, eu já usava calça comprida (como me sentia adulto!), azul-marinho e a camisa branca com o nome do colégio bordado no bolso.

E eu levava uma maleta sem alça, que ganhei do meu pai, que se abria em duas partes, feita de um material plástico diferente, azul celeste, e que se fechava com uma tira com botão de pressão. Lembro bem porque ela me acompanhou por anos, e pelo que aconteceu num dia nesse primeiro ano de ginásio. Com o número de matérias por dia, ela ia cheia de cadernos e livros, portanto, pesada.

Eu ia a pé, lá de baixo da Rua 12 de Outubro até minha casa, travessa da Pio XI, o que dá uns dois quilômetros ou mais, só que praticamente todo o caminho é em subida, o que já na época cansava um pouco, principalmente sob o sol do meio-dia. (Por isso hoje estranho tantas peruas escolares com percursos tão reduzidos...)

Com alguma frequência, eu ia junto com uns colegas, pelo menos pela Rua 12 de Outubro. A partir daí, ia sempre sozinho. Mas havia o bondinho, que poderia quebrar um galhão. Poderia pegá-lo na porta da escola e descer na Barão de Jundiaí, junto à viela. Uma viela contínua, que unia as ruas Tomé de Souza, Duarte da Costa e a Saldanha da Gama (eu sempre me perguntava: “Por que não Mem de Sá em vez de Saldanha da Gama?”). Saindo da viela na Saldanha da Gama, mais uns quatrocentos metros estaria em casa.

Mas nunca usava o bondinho, porque não tinha dinheiro, e dois quilômetros a pé naquela época era muito menos que dois mil metros hoje... (claro, por segurança).

Certo dia, saindo do Olavo Bilac, um grupo de colegas incentivou:

— vamos de bondinho?

— Eu não, estou sem dinheiro.

— Não precisa, a gente pula antes de o cobrador chegar.

— É, a gente sempre faz isso!

— Não, vou a pé mesmo.

— Não seja bobo, vamos, ele vem vindo!

— Vamos subir lá atrás... porque não dá tempo do cobrador chegar lá atrás!

Aí aparece um novo personagem: o cobrador. Só que, em vez de ficar, como hoje, sentado junto à roleta, não havia roleta no bonde aberto. O cobrador, um funcionário fardado, de quepe e gravata, andava pelo estribo, pendurando-se nos balaústres com uma das mãos e, na outra, trazia uma porção de notas de dinheiro. As notas eram dobradas na longitudinal (de comprido) e colocadas em torno do dedo médio, e ficavam presas entre este e os dedos anelar e indicador. Tecnologia manual da época. Com isso, o cobrador poderia se movimentar com (alguma) segurança e ficar com o dinheiro do troco literalmente à mão.

O mais curioso era que junto ao teto, de ambos os lados do bonde, em cima da extremidade de cada banco, ficavam penduradas tiras de couro, fixadas num cabo, que ia da parte de trás até a frente do bondinho, e ligadas a uma espécie de relógio, na verdade um mostrador com números, visível por todos os passageiros, e com uma sineta embutida.

Cada vez que um passageiro pagava uma passagem, o cobrador puxava a alça uma vez. O numerador adicionava mais um e a sineta tocava: Plim. Se pagassem duas passagens o cobrador puxava duas vezes, o mostrador registrava mais duas unidades acompanhadas por dois toques da sineta: Plim, plim (e a Globo ainda não existia).

Na época eu achava aquilo um pouco estranho. A inocência não me permitia ainda ver o nível de desonestidade nas coisas públicas a que chegaríamos. Aquilo era a transparência da ação do funcionário público que tinha sua honestidade vigiada... pelo público.

Mas acontece que naquele dia, como um “Maria vai com as outras”, fui e subi no bondinho, sem dinheiro pra pagar, e sem experiência em malandragem.

O bondinho começou a subir a Rua 12. E me avisaram: “Fica aqui atrás, porque o cobrador não chega até aqui quando o bonde diminuir a velocidade pra gente pular!”.

Mas acho que o cobrador e o motorneiro naquele dia combinaram com o diabo pra dar uma lição àquela molecada. O bondinho simplesmente não diminuiu a velocidade ao se aproximar do ponto. Os meus “mui” amigos, espertos e treinados, pularam fora. O idiota aqui hesitou. O cobrador vinha vindo, balançando pelo estribo. Eu não tinha dinheiro. E tinha medo de pular. O bondinho não desacelerava. O cobrador continuava vindo, cada vez maior. Meu braço esquerdo se agarrava à pasta azul. O cobrador cada vez mais perto. Minha mão direita se agarrava ao balaústre. Meu coração se desgarrava e parecia querer sair pela boca. E o cobrador vindo. Eu sem o dinheiro. O receio virou medo, medo virou pavor, o pavor desespero.

Disseram-me antes, como instrução atlética: “Você salta e corre o mais rápido que puder, na mesma velocidade do bonde, e só aí solta a mão”.

Criei coragem. E o motorneiro acelerou. E eu pulei e corri. Mas não consegui correr na mesma velocidade. O bonde virou uma carreteira e o motorneiro um Pintacuda. Minha mão foi arrancada do balaústre. Eu fui lançado feito um boneco de pano. Rolei pelo calçamento da Rua 12, feito bola de capotão em time de várzea. Sentia o mundo girar. Tudo virava. Eu ia rolando. O chão de macadame passava e me raspava. Gritos. “Olha!”; “Coitado”; “É uma criança”. “Cuidado, para!”. “Para”.

Por baixo de mim o chão de paralelepípedos corria rápido. Por cima vi se aproximando um negócio brilhante, cromado. Um pára-choque dianteiro de um automóvel preto. Enorme. Não sei se eu ia ao encontro dele, ou se ele vinha ao meu. Só sei que bem perto de mim. Menos de um metro. Gritos.

Aí, parei de rolar: bem debaixo de um carrinho que vendia frutas em pedaço (abacaxi? melancia? Não sei). Sei que era de madeira pintada de verde e com rodas de madeira e ferro, como das carroças. Sei bem porque fiquei ali, estatelado no chão, torto, sem conseguir respirar, quanto mais falar.

“Você está bem?” “Está machucado?” “Ajuda aqui! ” “Vamos chamar o Samdu!” “Meu Deus!” “Ajuda ele!”... eram pessoas que passavam pela calçada, era o vendedor de fruta, eram os que pararam para comer uma fatia, era gente que estava à porta de lojas. Eu não conseguia falar nada. Acho que só fazia com a cara (de idiota) algum sinal de que estava bem (apavorado).

Eu não morri! Mas acho que ressuscitei. Aos poucos, fui me mexendo, e percebendo que ainda tinha braços, pernas, mãos e pés. E, junto com o susto e o pavor, eu sentia vergonha. Uma enorme vergonha de estar estatelado debaixo do carrinho de frutas porque aprontei no bondinho, querendo usar e não pagar a passagem.

Uma mulher e um homem me ajudaram a me levantar e sentar na sarjeta. Outros recolhiam meus livros, cadernos e colocavam na pasta azul. “Onde já se viu pular assim do bonde!” “Isso não se faz, menino!” ...

Porém, observações encorajadoras me estimularam a sair dali o mais rápido possível: “Vamos avisar a mãe dele...!” “Precisamos chamar o pai...!”

Essas últimas frases me fizeram levantar, falar que estava bem (“mas você está branco feito papel!”) e querer sumir dali o mais rápido possível.

Se meus pais soubessem que eu tinha feito aquilo, aí sim teriam de chamar o Samdu!

Meus pais nunca souberam desse fato.

Eu nunca mais entrei num bonde ou ônibus sem antes conferir se tinha o dinheiro da passagem.


Revisão: Maitê Ribeiro