Sonho e coincidências (parte 1)

por Appio Ribeiro

30.08.2020

Rua Saldanha da Gama com a Viela, Lapa, São Paulo, SP

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de

acontecimentos que fizeram a história de muita gente.

Inclusive da sua. Este é um pedaço da minha.)

Sonho e coincidências na Saldanha da Gama (Parte 1)

Dias atrás tive um sonho que não consigo esquecer. Sonhei que dirigia subindo a Rua Pio XI, quando passo pela Rua Saldanha da Gama e vejo a casa da esquina, com sua antiga mureta e fachada de granito cinza, com uma parede frontal curva, sendo demolida.

Mais adiante, à minha esquerda, vejo que na esquina da rua em que eu morava, a Piraí, não havia mais a casa. Naquele terreno descampado – que no meu sonho era muito maior do que na realidade — tinham erguido uma casinha caiada, com teto de sapé e ali seria um “centro cultural”! Pobre Cultura! Lá não estava mais aquela casa grande, rosada, rodeada de gramado, com a varanda em arcos e com apliques de arenito vermelho, que conheci. Lá morava o Seu Guzzo, dono do Campos Salles. Fiquei triste no sonho. E quando acordei, fiquei mais triste ainda. Estavam demolindo minhas memórias. (*)

Achei estranho ter tido esse sonho. Mas, logo meu racional o associou às crônicas para este Cidadão e Repórter, e achei mera coincidência.

Ao retomar a redação, lembrei-me do sonho e da Rua Saldanha da Gama. Lembrei-me que sempre impliquei com o nome daquela rua. — “Ora, se as duas travessas anteriores da Pio XI foram nomeadas Tomé de Souza e Duarte da Costa (o primeiro e o segundo governadores gerais do Brasil) minha lógica infanto-juvenil achava que ela deveria se chamar Rua Mem de Sá (o terceiro governador). Lógico, não?! Por que, na sequência, a terceira travessa recebeu o nome de um oficial da marinha brasileira durante a Guerra do Paraguai? Nada a ver.

Mas o sonho me fez lembrar a Saldanha da Gama e as coincidências.

Então, vamos a elas.

  • Fui publicitário por décadas e depois, idoso, frequentei a ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) no Curso Criativa Idade.

  • Meu pai gostava de boxe, e falava dos seus ídolos, os grandes lutadores. Um deles, sempre comentado, era o campeão mundial de pesos pesados: Primo Carnera. (Eu era bem pequeno e fiquei impressionado no dia em que vi, guardadas e escondidas num armário, as luvas de boxe de couro natural de meu pai. Pois é, já adulto eu treinei por quase 20 anos, e só as artroses me levaram às cordas).

  • Quando comecei a namorar aquela que se tornaria minha esposa, então uma adolescente, soube que ela havia feito um “investimento”: comprara cotas de um empreendimento que talvez poucos saibam ou se lembram que existiu. A idéia desse empreendimento era construir um “parque temático” (naquela época, anos 60, nem essa expressão existia), que se chamaria Vasconcelândia — nome certamente em função do sucesso da Disneylândia.

  • Comecei a trabalhar no Correio Paulistano, como office-boy. Mais tarde, prestei (e passei) vestibular para a Faculdade de Economia.

E daí?! O que tem a ver um ídolo do meu pai, um investimento da minha namorada, a minha profissão, a ESPM depois de idoso, a minha faculdade e o meu primeiro emprego com a Rua Saldanha da Gama? Bem, isso não é novela, então vamos lá, vamos às tramas da vida real:

Como publicitário eu atendi vários clientes, entre eles a Simca do Brasil que virou Chrysler do Brasil. Um dia me apresentam o novo Gerente de Treinamento. Quem? Um ex-amigo e ex-vizinho, o Bógus, que morava... na esquina da Saldanha da Gama, na casa que - no meu sonho - estavam demolindo.

Meu primeiro emprego foi no Jornal Correio Paulistano o mais antigo jornal diário da cidade de São Paulo, criado em 1854. Office-boy da diretoria e da redação, eu passei várias tardes, sentado na antessala do dono do jornal (Dr. João de Scatimburgo), ouvindo as “lições” de história e filosofia de um dos colaboradores do jornal, pessoa cultíssima, que me empolgou tanto com a História que, após décadas, fui fazer Mestrado na USP em... História.

Concluído o Colegial, fui cursar a Faculdade de Economia, mas antes tive de prestar o vestibular, que na época incluía fazer exame escrito e, se obtivesse nota acima da média, teria de passar pelo exame oral.

Bem, o que o parque temático, o Correio Paulistano e a Faculdade de Economia têm a ver com a Saldanha da Gama?

Isto: eu, garoto, andando por essa rua, com frequência conversava com duas moradoras, duas senhoras (velhinhas, para mim na época), atraído pelo som do piano que tocavam na casa. Na época eu estudava piano. Elas eram muito atenciosas e educadas e com elas morava um irmão, e que lá conheci: o Sr. Pagano, mais conhecido por Conde Sebastião Pagano. Qual a coincidência? Aquele jornalista colaborador do Correio Paulistano, que ficava me incentivando ao estudo de História era ninguém menos do que o Conde Sebastião Pagano, que se surpreendeu ao encontrar aquele quase vizinho, trabalhando no jornal (eu tinha 14 anos), daí seu interesse em me dar tanta atenção (e ensinamentos).

Aos 17 anos lá vou eu, tremendo, fazer o exame oral no vestibular de Economia. Entrava um aluno por vez na sala em que estava a banca examinadora. Quando entrei, havia uma carteira isolada para eu me sentar, e sobre ela um saquinho contendo os números para se sortear o “ponto”. Diante dela, três mesas, com os três professores (parecia mais o tribunal da Inquisição). A mesa do centro, sobre um estrado, mais alta, indicava o professor titular. E ao ver-me, o professor titular exclamou: “Ora, você por aqui”? Quem ocupava a presidência da banca? O meu “quase vizinho” da Rua Saldanha da Gama, aquele colaborador do Correio Paulistano: o Conde Sebastião Pagano. Fui aprovado, mas sem louvor.

Agora, o que tem a ver o investimento da minha adolescente namorada, com os ídolos do meu pai e a ESPM?

Bem, como esta crônica já está bem grande, então... não percam o próximo capítulo desta eletrizante novela: “Sonho e coincidências na Saldanha da Gama (Parte 2)". Até lá.

(*) Após escrever esta crônica, ocorreu outra coincidência: por curiosidade abri o Street view do Google e tive um dissabor: na realidade e de fato a casa da esquina com a Rua Piraí tinha sido demolida, o terreno — agora baldio — sem nada construído e um tapume cercando tudo. E uma placa dizendo”Futuro Lançamento Kallas”. Um convite para me calar? Coincidência?


Revisão: Maitê Ribeiro