São João, São João, reacenda a fogueira

por Appio Ribeiro

20.06.2020

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.)


Os junhos atuais são diferentes dos junhos da minha infância. As noites eram frias, como as de hoje. Talvez mais frias por causa da garoa frequente. Aquela névoa caía sobre São Paulo com a noite, encobria o céu, e formava um halo em torno das lâmpadas amareladas das ruas. Hoje São Paulo não tem mais garoa, embora ainda tenha junhos, e o céu seja o mesmo.

Mas naquela época o céu era de todos. Se a garoa encobria as estrelas, nem por isso o céu era apagado. Ficava coalhado de luzes, maiores e menores, movendo-se na mesma ou em diferentes direções, com tonalidades variadas. Eram os balões. De perto, “em terra“, soltá-los era quase uma cerimônia. Depois de dias vendo meu pai cortar e colar folhas de papel de seda, num arranjo de formas e cores, por fim chegava o dia de soltá-los. Depois da armação feita de arame e colada “na boca”, o balão estava pronto. Chegava a hora de preparar a tocha. Formada por tiras de saco de estopa enroladas em parafina e cera raladas era presa por arame na boca do balão. Com o cuidado de um artesão e a precisão de um cirurgião a tocha era umedecida com querosene, pois se tocasse no papel, adeus balão! Na hora de soltá-lo, cada um segurava uma das pontas, no ângulo em que unia as folhas. As crianças seguravam as pontas de baixo, os adultos as pontas de cima. O mais alto subia numa cadeira para segurar o pico. Mas enchê-lo de ar era manual: abanando com tampas de panela transformadas em leques. Até que, por fim, com o balão cheio, vinha o momento crítico: pôr fogo na tocha sem que o fogo atingisse as finas folhas de papel de seda. Meu pai era mestre nisso. O calor da chama terminava por insuflar o balão. Aí, numa sequência coordenada, meu pai ia ordenando a cada um soltar a ponta que segurava. E todo o balão se sustentava pela boca de arame, habilmente segurada pelas mãos seguras que sabiam – como não sei – o momento certo de dar o impulso e o balão assumir seu próprio destino. Palmas acompanhavam a emoção de ver aquele objeto iluminado subir aos céus, balançando, e a gente torcendo para que o balanço não o levasse a se incendiar. E ficar pensando: por onde e para onde irá o nosso balão? E quando se via um balão apagado caindo era aquele corre-corre para tentar pegar o balão. Inteiro.

Naqueles junhos, até as rádios mudavam. Não existiam ainda as FMs e as AMs dominavam as comunicações — exceto uns fanáticos que curtiam ouvir os chiados das Ondas Curtas (BBC, Voz da América, emissoras do Rio...), e a televisão nos anos 1950 ainda era para poucos. As rádios mudavam a programação. Assim como antes do carnaval só tocavam marchinhas e sambas e na Quaresma e Semana Santa só tocavam música sacra ou erudita, nos junhos a programação era dominada pelas músicas caipiras. Não sei se esse seria o nome certo, porque hoje caipira e sertanejo têm significados diferentes da época. Só sei que predominavam as músicas com sanfona (acordeon para os mais sofisticados), com Mario Zan tocando em todas as rádios e as duplas com violas (Tonico e Tinoco já faziam sucesso) saíam dos seus programas tradicionais. “Cai cai balão”, “Chegou a hora da fogueira”, “O Sanfoneiro que só tocava isso”, “Pula fogueira”, “O balão vai subindo” são as que me lembro, muito bem e com muita saudade.

Nas ruas a fogueira. Em sua volta, vizinhos, amigos, parentes. Junho, diziam, era o mês dos Santos. Mas, sem saber, acho que se comemorava a Santa Confraternização. Uma vizinha levava o bolo de fubá, outra o pé de moleque. Uma, balde com canjica, outro com espiga de milho, uma travessa com sagu, outra travessa com pinhão cozido, umas panelas com pipoca, uma bandeja com pamonha, outra de biscoito, e de cada casa, de cada família, surgia um prato típico. Os homens, geralmente, eram os responsáveis pelo quentão – levava pinga no seu preparo, ou então, traziam o vinho quente com canela. E a batata-doce, fazia parte da fogueira. Era colocada nas brasas para assar.

A maior festa de São João para mim era na Rua João Anes, uma ruazinha de um quarteirão, primeira travessa da Pio XII, só de casas. E uma delas era a do meu Tio João (que saudade!). Um tio-avô, pra mim já velhinho, porém forte e rijo, com cabelos totalmente brancos, finos e ondulados — os mais bonitos que vi até hoje... pareciam fios de seda. Ele passava lá em casa, quase todo fim de semana, antes do almoço, para um papo, e tomar um “schnaps”, como dizia brincando. Eu adorava ficar no seu colo ouvindo suas histórias. E ele ficava apertando a ponta dos meus dedos, um por um, e aquilo parecia um tranquilizante. E até hoje, meus netos, já crescidinhos, ainda me pedem: “me aperta os dedos, vovô.” (Obrigado, Tio João, por ter ensinado a fazer mesmo com meus netos). E o Tio João todo ano fazia uma festa no seu dia. E tinha um “enorme” detalhe. Meu Tio João trabalhava na Serraria Lameirão, uma grande empresa de fornecimento de madeira (eu até achava que ele usava um perfume de peroba), e durante todo o ano ele juntava todo tipo de madeira descartada, e no dia de São João armava uma fogueira enorme, de mais de dois metros de altura.

Calça comprida com remendo, camisa xadrez, chapéu de palha, rosto com bigode, cavanhaque e sobrancelhas unidas pintadas por meu pai com a rolha de cortiça queimada, o uniforme estava pronto. E lá íamos curtir a festa, no Tio João. Que delícia! A vitrola vinha pra varanda, a mesa grande pra calçada, cadeiras e bancos espalhados, e na rua de terra a fogueira, mandando labaredas para o céu. E muita gente, inclusive uma netinha do Tio, loirinha, de olhos azuis. Que eu me lembre foi a primeira insinuação de namoro: chateavam a gente dizendo que íamos ser namorados... quando crescêssemos. Eu me envergonhava, mas gostava.

Quem conheceu as festas de São João da época deve estar achando que falta alguma coisa, que as patrulhas morais dos tempos hoje também já eliminaram de vez. Não lembram o que “não dava chabu”? Os fogos. Os rojões, presos àquelas varetas compridas pra mais de metro, que subiam rugindo e explodiam lá em cima, no céu que se iluminava. E os morteiros — que meu pai dizia que se pareciam com as bombas que ele viu (e ouviu) cair nas revoluções de 24 e 32. “Fogos Caramuru, os únicos que não dão chabu”, iluminavam as festas, com aqueles tubos de papelão com a manopla dobrada, que a gente acendia com um fósforo ou raspando a caixa de fósforos. “... Mais seguro acender com um graveto em brasa...”, e lançavam geralmente três bombas ao ar. E havia também os traques (que a maldade e o politicamente incorreto (!) chamava de traque-de-velha), aquelas tiras de papel pardo, com as meias-luas marrons que explodiam à medida que o fogo do papel chegava perto. Para as crianças tinham as biribas, aquele pedacinho de papel enroladinhos, que jogados no chão com força explodiam (bem fraquinho), ou então deixava no chão para estourarem quando os adultos pisassem. (O uso de tênis e sola de borracha ainda não estava disseminado). As estrelinhas que segurávamos sem perigo? E os fósforos de cor, que não explodiam, mas coloriam? E os fogos giratórios, presos a paus, que acesos giravam cada vez mais velozes, impulsionados pelas chispas de chamas, colorindo até explodirem?

A noite ia seguindo, ficando mais fria, a fogueira diminuindo, as labaredas não mais subindo, a fogueira ficava baixinha, era quase só brasa. Era a hora de colocar as batatas-doces para assar. Era hora de... pular a fogueira! Primeiro que os marmanjos mais aptos já tinham dado suas demonstrações de coragem, com as brasas diminuindo, para horror das mães era a vez das crianças também pularem. “Cuidado pra não pisar na batata!”

A garoa ia aumentando, já não se conseguia ver o fim da rua, um halo se formava em torno da luz amarelada das lâmpadas dos postes... não sou capaz de descrever, mas essas noites tinham até cheiro próprio.

As bombinhas explodindo já escasseavam. Lembram? Havia as bombinhas de tostão ou centavos – aquelas fininhas, como um palito de fósforo comprido enrolado no papel pardo, e explosão pequena (embora assustasse quem estava desprevenido) por perto. E também havia aquelas bombinhas maiorzinhas, com mais pólvora, e vendidas por número (nº 1, nº 2, nº 3, etc. – maior número, mais potente), com aquele formato típico, de um rolo envolvendo o palito, e amarrado nos extremos com um barbante. Era riscar e jogar longe, e rápido.

E pra terminar essa noite de boas lembranças, numa daquelas festas na Rua João Anes, contrariando a recomendações de meus pais, fui jogar uma bombinha número dois. Mas o pavio foi mais rápido do que eu. Ela explodiu antes de eu soltá-la. Minha mão ficou com o formato das batatas-doces roxas.

A dor e o susto estragaram o fim daquela festa de São João, e também a festa de São Pedro, porque fiquei mais de uma semana de castigo e com a mão enfaixada.

Aquela dor passou. Só não passam a dor da saudade e a dor de ver que não mais existem essas festas, e que não se reverencia mais a santa... confraternização.


Revisão: Maitê Ribeiro