Protestos e meganhas

por Appio Ribeiro

21.05.2020


(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.)


A Rua Antonio Raposo não me deu só prazer. Deu também medo e dor, dor física.

E não foi no dia que fui pro pau com o cara que fazia bullying comigo, como contei. Eu já estava no Ginásio, no Olavo Bilac, que fica lá em baixo na Rua Doze de Outubro, defronte ao que foi o Cine Carlos Gomes. Principal rua de comércio do bairro, possuía todo tipo de lojas. Era a rua para se fazer as compras, mas também para “passear e ver lojas”. Não era o footing porque não era uma pracinha. Ainda não tinham inventado os shopping centers.

Eu deveria estar na primeira ou segunda série do ginásio, não lembro bem. Só me lembro que estávamos em aula, quando ouvimos uma balbúrdia em frente da escola, provocada por uma turma de estudantes que gritavam “Fora, fora... greve, greve...” e slogans parecidos. (“mutare tempora, sed habitus manet!” * – mania dos meus anos de latim).

Estudantes secundaristas, 1958

Queriam que a gente saísse para ir tirar alunos de outras escolas, para fazerem greve! Bah!

Meu amigo de classe, Chico Milan – e depois meu padrinho de casamento – continuou um ativista, não resistiu ao apelo e me arrastou. Arrastou não é bem o termo, porque se eu não quisesse ir não iria. Mas fui. E todo o colégio foi junto.

Era um tal de “Greve! Greve!”, “Abaixo aumento!” ... e aí entendi o que era: um movimento estudantil, comandado por uma tal de “União dos Alunos Secundaristas”, que protestava contra o aumento das mensalidades. Eu nem sabia que tinham aumentado.

Hoje me sinto um babaca, usado como centenas de outros o foram, e milhares continuam sendo até hoje.

Mas, naquele dia, subimos a Rua Doze de Outubro para ir “fechar” o “Campos Sales”, colégio que ficava bem em frente de onde sai a Antonio Raposo, onde ficava o Grupo Escolar Pereira Barreto.

“Greve!”, “Abaixo os aumentos!”... e a rua foi sendo tomada por estudantes, cujo número ia aumentando. Muitos gritando as palavras de ordem, ou palavras ordenadas, porque repetiam como macaquinhos. Ou melhor, papagaios.

O Bazar Lapeano, onde a gente parava para ouvir os últimos lançamentos em disco, ponto de encontro dos adolescentes, fechou as portas. Ficava bem ao lado do Campos Sales. O trânsito também foi fechado. Naqueles tempos motoristas não passavam por cima de ninguém e não iriam passar por cima dos estudantes. Havia poucos veículos, mas pela rua transitavam bondes, ônibus e carros. E no meio daquela farra, porque nada era mais do que uma farra, alguns jogaram coisas na escola – talvez pedras – achei errado, mas o idiota aqui se sentia um ativista (naquela época sei lá o que isso queria dizer).

Soldados fardados

Até que, súbito, começou um corre-corre. Motivo: vindas da Rua Guaicurus, subindo a Rua Doze de Outubro umas peruas da “Força Pública” (era o nome da Polícia Militar de hoje). Outras, vindas da Barão de Jundiaí, portanto em sentido contrário, começaram a prensar a turba. Os “meganhas” (era esse o apelido dos policiais militares de então), de capacete e farda cinza-cáqui, saltaram das viaturas de cassetete em punho. Cassetete não, eram enormes cacetes de borracha. A gente tinha muito respeito pela polícia, tanto da força pública quanto da guarda civil. Aí foi a hora de sentir medo dela.

A única escapatória era a saída para a Rua Antonio Raposo, que também já tinha uma turba que protestava em frente ao Grupo Escolar (que nem secundarista era e muito menos escola paga, não cobrava mensalidade). Corri pra lá.

Mas já vinha chegando um terceiro grupo de meganhas, vindos da rua D. João V.

Foi aí que entendi o que era ser ativista. E idiota. Corri, mas não escapei de um leve borrachada.

Penso hoje que queriam mais assustar do que ferir. Mas, se foi leve pra que bateu, foi forte pra caramba pra quem recebeu.

E minha sede de protesto virou um medaço. Corri e me enfiei na entrada de um sobradinho, cujo acesso à porta da frente era um pequeno espaço, onde ficava o registro da água. Mais uma bela lição recebi na Rua Antonio Raposo.

Toda a minha coragem e minha sede de protesto couberam, devidamente escondidas e encolhidas, debaixo dum registro d´água.

* “Os tempos mudam, mas os hábitos permanecem”


Fotos internas da matéria: Appio Ribeiro
Revisão: Maitê Ribeiro