Na Nossa Senhora da Lapa, o mais lindo encontro

por Appio Ribeiro

05.07.2020

Igreja de Nossa Senhora da Lapa - São Paulo - SP

(O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.)


Nossa Senhora da Lapa. Essa rua é comprida. Começava lá em baixo, na confluência da Rua Guaicurus, próximo dos trilhos do trem e subia até a Rua Clélia e sua continuação era a Rua Pio XI. Ela unia a parte antiga do bairro com a parte mais nova, a City Lapa, onde eu morava. Minha mãe me contava que nessa parte mais antiga e mais baixa do bairro era onde ficava o sítio do meu bisavô (Amâncio Nunes), isso no fim do séc. XIX e começo do séc. XX, mas nunca soube ao certo qual era o quarteirão.

Nela hoje tem até uma praça com o nome de Professor Mario Guzzo, que era meu vizinho (morava na Pio XI, esquina com a Piraí) e dono do Colégio Campos Salles.

Na esquina com a Rua Afonso Sardinha (eu achava que essa rua devia ter cheiro de peixe) ficava a Igreja de Nossa Senhora da Lapa. Para mim, com sete anos, ela era enorme. Por fora era toda de tijolos vermelhos (as más-línguas diziam que não a revestiam para não concluir a obra e ter de pagar imposto).

Eu a frequentei muito, desde o Catecismo com o Professor José, e que depois da primeira comunhão continuei a frequentar, quando recebi um apelido pejorativo: “a voz da consciência”. Bullying religioso. Superei, e continuei frequentando, aí na Cruzada Eucarística Infantil — até receber a maior daquelas faixas, amarela com a cruz azul, engalanada por tiras douradas, e quase mais larga que meu ombro. Da primeira comunhão, ainda guardo a foto, ajoelhado, de terninho azul-marinho, fita branca, terço na mão. Não sou mais praticante – o que não quer dizer que não tenha espiritualidade — e quando meu neto fez a primeira comunhão, dei-lhe com o presente essa foto. Ele se orgulhou. Não é preciso dizer que somos muito ligados.

Nessa igreja vivi bons e instrutivos momentos. Ficava horas vendo um senhor, de avental, cabelos grisalhos e bigode farto, pintando os afrescos que decoram o interior da igreja, às vezes empoleirado ou deitado em andaimes. Se não esqueci, seu nome era Seu Ângelo, o sobrenome não sei. Mas lembro bem das folhas de papel rasgado, que ele colava nas paredes e depois eram sobrepintadas e retiradas, dando aquela aparência de ranhuras de mármore rosa. Seu pincel era mágico fazendo nuvens, volutas, estrelas, figuras e textos pelas paredes... hoje quando brinco com meus pincéis e telas, sem dúvida, aquela sua obra permanece em mim.

O som do órgão era magnífico e nos enlevava nos cultos e nos acompanhava no canto: “Os anjos, todos os anjos...”, “Louvando a Maria seu povo fiel...” e outros. Mas emoção grande foi quando o Padre Guerino, que era organista, me deixou subir a marquise e sentar no banco do órgão, alto de não permitir que meus pés tocassem os pedais no solo (chão). E com tantos teclados, chaves, botões e pedais, fiquei em pânico quando o Pe. Guerino me disse: “Pode tocar!”. Eu, tocar? Então me atrevi: dedilhei aquilo que eu aprendera no piano, com a minha professora Zulma. Foi incrível como minhas mãos puderam provocar tanto som. Muitas décadas depois eu tive o meu próprio órgão, um Gambite. E após mais umas décadas, seu som voltou para um local sagrado: eu o doei à Igreja Coração de Jesus.

Interior da Igreja Nossa Senhora da Lapa - São Paulo - SP

Voltando à Nossa Senhora da Lapa: nos domingos, após a missa das oito, a diversão da molecada era no salão paroquial da igreja: um cinema particular, cadeiras individuais, filmes preto e branco velhos, de bang-bang, como os do Tom Mix com aquele chapéu comprido ou do Roy Rogers de camisa xadrez (eles nunca trocavam de chapéu e nem de roupa, argh!). E tinha desenhos animados, do Gato Félix, Betty Boop, Popeye... Tudo em preto e branco, para colorir nossas matinais domingueiras.

Além da gritaria da garotada torcendo pelo mocinho chegar a tempo — sim, naquela época cinema também tinha torcida – o grito que não me sai da memória era: “Fecha a porta!”. Porque a porta de entrada do salão ficava ao lado da tela. E toda vez que era aberta, a luz entrava e apagava a imagem da tela. “Fecha a porta!”.

Esses foram encontros que marcaram a minha infância. Mas o mais lindo deles foi quando, depois de um mês de Quaresma (em casa sem ouvir música popular, fazendo jejuns, e na igreja com todos os santos cobertos com panos roxos), chegou o dia (sábado) de malhar o Judas e depois lavar os olhos (!) e poder comer carne. E no dia seguinte, acordar às quatro horas da manhã, me vestir e ir para a igreja.

Na semana anterior, depois da Missa do Domingo de Ramos (quando eram distribuídas palmas bentas aos fiéis que depois as incineravam em casa acompanhando suas preces), havia na Quinta e Sexta-Feira Santas as procissões noturnas, que colocavam todo o bairro de luto acompanhando o féretro do corpo de Jesus (uma estátua super-realista que me dava medo), e a noite só iluminada pelas velas acesas davam um ar tétrico.

A bandinha ia lá atrás tocando a marcha fúnebre. Próximo ao andor, um homem taciturno, com a fita da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, batia a “matraca”, que soava alto entre as casas e lojas da Lapa. Era a mesma matraca que o vendedor de biju usava para chamar a freguesia (e aí me ocorria a piadinha mental: “E cadê o biju?”. Arrependimento e contrição). E quando, de quarteirão e quarteirão, um homem colocava um cadeira de madeira junto àquela mulher que acompanha a procissão, toda de preto e a cabeça coberta por véu negro, e ela subia na cadeira segurando um papel enrolado e com voz de soprano cantava um recitativo e simultaneamente ia desembrulhando, e depois lentamente o exibia para todos com a imagem de Cristo morto estampada, era de arrepiar, de tristeza ou medo.

Mas chegara o Domingo de Páscoa, dia de acordar às quatro horas da manhã, me vestir, e ir para a igreja. Eu ia acompanhar a “procissão dos homens”, que era como a continuação da procissão da Quinta e Sexta-feira Santas. Ela saía de frente da igreja. Era ainda noite quando percorríamos as ruas da Lapa, formando aquela fila longa de homens segurando velas acesas dentro das cúpulas de papel. A banda (um primo meu, o Mimo, nela tocava bumbo! – que orgulho) desafinava o tempo todo tocando a marcha fúnebre de Chopin, num andamento largo-lento, dando os ritmos aos passos dos fiéis.

As colegas da Cruzada, naquele tempo havia diferença de gênero, iam à frente de outra procissão, a das mulheres, que acompanhavam a imagem de Nossa Senhora em prantos, seguida por outra parte da banda com o mesmo repertório fúnebre.

Quando a manhã começava a clarear o céu da noite chegávamos novamente à frente da igreja. E como que num sincronismo coordenado pela natureza, ou pela fé, quando o sol despontava, as imagens de Nossa Senhora e de Jesus chegavam juntas defronte da igreja.

Rojões espocavam no céu e a banda atacava um dobrado entusiasmado, e a alegria se espalhava por todos. Significava que o tempo de sofrimento passara e que a dor dera lugar ao amor e à felicidade do encontro. Simbolizava a Ressurreição, a esperança depois da morte.

E a procissão se desfazia em uma festa. E meu coração se desfazia de emoção.


Revisão: Maitê Ribeiro