Minha santa bengala

por Malu de Alencar

19.03.2020

Nunca imaginei que um dia pensaria na velhice, mas ela chegou de mansinho, nem percebi que ela avançava em meu tempo e uma hora poderia atropelar meu caminho.

Cada dia sempre foi mais um dia. O hoje sempre foi meu futuro e o passado minha memória, minha saudade, minhas lembranças.

Ah... mas um dia a idade chegou.

Estava no centro da cidade, tinha de pegar uns documentos no Fórum João Mendes.

Desci no metrô da Pça da Sé e fui caminhando em direção ao fórum, percebi que me doía andar depressa.

A perna coxeava e tinha que me apoiar em alguma coisa.

Tropecei, não era o salto do sapato que tinha quebrado como já tinha me acontecido anos atrás bem ali perto, também não era a calçada, era minha perna que estava falhando mesmo.

O que fazer? Pedir socorro:

- Me acuda! Não consigo andar... Socorro...

Iam pensar que estava totalmente fora da casinha, uma louca gritando na rua...

Parei numa farmácia e pedi conselho para o balconista.

- Moço, não consigo andar direito, o que faço?

Gentilmente me disse:

- É melhor a senhora arrumar um apoio.

- Apoio? Como?

- Uma bengala....

- Bengala? Onde vou conseguir uma?

- Ali na frente, nessa mesma calçada tem uma loja que vende bengalas.

- E como faço? Chego e falo o quê?

- Diga que está com dificuldade de andar, peça uma bengala!

- Simples assim? Quero uma bengala?!!!!

Exatamente, foi assim que aconteceu. Segui na calçada me apoiando nas paredes até a loja de bengalas....

Muitos modelos: de madeira, de madrepérola, de metal, coloridas.

Escolhi uma de metal preto, com regulagem e que poderia desmontar e carregar na bolsa.

Adorei....

Comprei a bengala, regulei para o meu tamanho.

Treinei ali na loja, subi e desci escadas, andei pela loja....

Tropecei, mas não cai.

Saí feliz com uma bengala preta, de metal. Agora podia pedir licença para quem estava na minha frente sem

ter que chamar atenção batendo nas costas:

- Dá licença!

Bastava apontar a bengala na frente...

Além do mais me anunciava, bastava bater mais forte no chão, o metal fazia um ruído me anunciando.

Feliz da vida, cheguei ao meu destino.

Percebi que me davam licença, me passavam na frente.

Fiquei preocupada. De repente, as pessoas me enxergavam de outro jeito, com mais deferência. Procurei um espelho para ver meu rosto, mas só tinha porta de vidro fosco.

O que estava acontecendo?

Nunca tinha imaginado usar uma bengala. Mas adorei a ideia de ter um poder oculto, um poder só meu: minha bengala era mágica.

Usei alguns dias e esqueci da bendita.

Até que tive de fazer uma cirurgia no coração.

Outro susto, de repente parei no hospital e descobri que tinha tido 3 infartos. Sai com 5 pontes, coração remendado, mas forte como uma pedra.

Mas a perna direita não tinha mobilidade, não andava, estava paralisada.

Lembrei da bengala. Santa bengala.

Pedi para meus filhos:

- Achem minha bengala... tragam minha bengala!

Não ando mais sem ela.

Juro que não me sinto mais velha por causa dela, na verdade sinto que tenho mais poderes.

Poderes que os anos me deram e que a Dona Bengala deles se revestiu, entrou na minha memória, na minha história e me garantiu uma aposentadoria poderosa: "Jamais te abandonarei! Sou seu prumo, seu remo, sua estrada, seu caminho, sua trilha... estarei sempre te protegendo".

Faz exatos 9 anos que não ando sem minha bengala.

Aposentei a minha primeira bengala como se fosse um amuleto, comprei várias outras, todas de madeira, mas de vez em quando dou umas voltinhas com a minha pretinha de metal.

Não me sinto velha, pelo contrário, sou uma privilegiada.

Tenho uma bengala que me faz andar por onde quero, como quero e me abre caminho, nem preciso pedir "Dá Licença"!

Santa Bengala!!!! Que seria de mim sem seu apoio?