Fora e dentro

por Eugenia Pickina

18.06.2020

Eu lia há muito. Desde que esta tarde

com o seu ruído de chuva chegou às janelas.

Abstraí-me do vento lá fora:

o meu livro era difícil.

Olhei as suas páginas como rostos

que se ensombram pela profunda reflexão

e em redor da minha leitura parava o tempo.

De repente sobre as páginas lançou-se uma luz

e em vez da tímida confusão de palavras

estava: tarde, tarde... em todas elas. Rainer Maria Rilke

Comovo-me ao ler o poema de Rilke "O homem que lê"(*).

Fiquei então com vontade de sair à caça da tarde e do sol, sobretudo hoje que o dia amanheceu chuviscando e frio.

Além disso, apesar dos deveres, considero importante arrumar tempo em nossas vidas atarefadas para colher esse tipo de experiência apontada pelo poeta Rilke: “Aí fora existe o que vivo dentro de mim”.

Aí fora existe beleza; espairecendo a cabeça, contemplando o céu, é possível, por isso, reparar a transitoriedade que impregna todas as coisas, mesmo o formato pesado das nuvens. À hora do crepúsculo, tudo ao redor se resumirá assim às notas da natureza: o canto das aves, a rede dos grilos, a quietude das árvores, o frêmito da luz.

Aí fora existe simplicidade. O arco-íris no entardecer, que surge sobre a ponte e o rio, enfeitando as casinhas amarronzadas e o arvoredo, os girassóis que se tocam no fim do mundo.

Aí fora existe felicidade, ainda que sejamos afligidos ora pela ganância (que é o veneno que nos faz continuar querendo mais), ora pela ignorância (que é um estado precário de tolice), ora pela raiva (que nos faz perder o controle quando há medo ou desatenção).

Aí fora existe compaixão e confiança.

E, tal como fora e dentro, amizade e bondade permanecem no mundo e vão permitindo alegria e vida criativas, mas muito prudente nenhum de nós negligenciar um outro fragmento de Rilke, que conta uma verdade inerente à nossa própria vida:

“Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?”

Aí fora não existe um caminho único, mas caminhos diversos, ainda que, no geral, rumamos em direção a uma mesma meta: ansiamos nos aproximar do nosso eu essencial para, em vez de atacar, defender, acusar, maldizer, aprender a dar espaço a si e aos outros, pois amor e bendizer não conseguem florescer sem isso…

Notinhas

(*)”O homem que lê”, fragmento de Rainer Maria Rilke, in O Livro das Imagens. Tradução Maria João Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 2005.

Às vezes, para discernir o que é essencial na vida, é salutar a gente cultivar com cuidado alguma coisa. Por exemplo, preparar em casa um pequeno canteiro para plantar flores ou aromáticas. Quando aquilo que foi plantado começar a crescer, você sentirá uma alegria indescritível, além de um feliz espanto. Além disso, é por meio desse ato de cultivar interessado que desenvolvemos uma mente dedicada a cuidar das coisas importantes, exercitando afeição e atenção.

Revisão: Maitê Ribeiro