Ele não chorou

por Galismarte

06.01.2020

Roberval era um garotão conhecido como aqueles que tinham “30 anos de praia”.

Clarice era a filha única querida de um pai protetor.

Roberval sempre tomava um café no Atlântico, na Ana Costa em Santos, e ficava por ali, queimado de sol, com sua impecável calça de linho branco.

Clarice e as amigas faziam footing por lá, onde iam tomar um sorvete e jamais entravam no Atlântico, lugar só de homens que fumavam.

Trocaram olhares. Roberval ficou encantado com a pureza da moça. Exatamente o contrário das moças namoradeiras que andavam por lá.

Clarice não resistiu àquele deus grego, alto, forte e bronzeado.

Começaram a namorar sem que o pai soubesse.

Logo o pai, desconfiado, contratou um detetive particular para saber quem era aquele que andava com sua filha.

Não sei se o detetive teve sucesso na carreira. Acho que não. Deu seu parecer: “Trata-se de um jovem de boa família santista. Trabalhador e não tem nada que o desabone”.

Casaram com a bênção das duas famílias e Clarice foi morar com o sogro que era viúvo.

Roberval trabalhava com o pai, fazendo não se sabe bem o quê.

Clarice, que era excelente cozinheira, era adorada pelo sogro.

Mas quis o destino que o pai de Roberval morresse repentinamente. A fábrica que tinha faliu e o garotão de “30 anos de praia”, já com dois filhos, não tendo estudado muito, teve que trabalhar para sustentar a família.

Clarice cuidava com esmero das crianças e da casa.

Roberval, que gostava de viver perigosamente, foi trabalhar com o primo, contrabandista. Para driblar a polícia marítima, os navios jogavam no mar, na escuridão da noite, os cigarros americanos e os whiskies. Roberval, numa lancha de motor silencioso, recolhia a muamba.

Crianças na cama, Clarice ficava, com o coração na mão, esperando o marido chegar, para lhe esquentar o jantar.

Um dia, ou melhor, uma noite, deu zebra. A Marítima chegou não se sabe de onde. Roberval só se livrou da cana porque o primo comprou sua liberdade com parte da carga.

Roberval, marcado pela polícia, com dinheiro emprestado pelo irmão de Clarice, abriu uma adega. Ali ele recebia os amigos, contava os planos fantasiosos que tinha para o futuro, levava inúmeros calotes e, sem perceber, começara a beber além da conta.

A família então iniciou um périplo que ia desde o interior de São Paulo até o Paraná.

Roberval era agora administrador de fazendas, coisa de que gostava muito, mas entendia pouco.

O tempo passou, a vida era dura, as crianças cresceram e a família acabou voltando para o que Roberval chamava de “saudades do mar”.

O primo, agora ex-contrabandista, porém cheio da nota, chamou Roberval para administrar um prédio que estava construindo na Praia Grande.

O filho foi tentar a sorte, como jogador de futebol, num time do interior; a menina, já moça, foi morar com uma tia em São Paulo.

Roberval e Clarice estavam finalmente entregues a si mesmos.

Clarice ia todos os dias à igreja e fizera muitas amigas.

Roberval cuidava de algumas contas, bebia com os amigos no fim da tarde e à noite, logo após o jantar, saía sem dizer pra onde ia.

As amigas iam para a casa de Clarice e fofocavam sem parar. Diziam que Clarice ainda era jovem, bonita mesmo, e que o marido não prestava. Bebia e toda noite ia para o Morcegão, uma boate não muito distante do apartamento que o primo lhes dera.

Clarice encerrava todas as conversas sempre da mesma forma: “Se fosse pra recomeçar do zero, faria tudo de novo”.

Um dia, Clarice ficou sabendo que uma das moças do Morcego Vermelho, pouco mais que uma adolescente, estava no final de uma gravidez. As amigas logo insinuaram que Roberval era o pai.

Quando a criança nasceu, Clarice logo percebeu que a moça não queria ficar com o bebê e ia deixá-lo na porta da igreja. Foi ao hospital, deu conselhos para a jovem largar aquela vida, para que voltasse para o interior e começasse uma nova vida. Deu a ela até todas as suas economias de vários anos e levou a criança para a casa.

Roberval, sem dizer uma palavra, parecia até estar achando tudo muito natural.

Clarice batizou e registrou o moleque como filho seu e de Roberval.

A vida de Clarice continuou a mesma: cuidando da casa, do garoto cujas feições lembravam o pai, e a ida diária à igreja. Sentada no escuro, esperava o marido chegar para pô-lo na cama.

Os dias passaram e Clarice ficou doente. Não se queixava, mas por insistência das amigas foi ao médico. Não era coisa boa.

Passava o dia na cama, com dores que fingia não sentir. A tia e a filha haviam levado o garoto pra São Paulo. As amigas é que cuidavam dela, até Roberval chegar e ir tropeçando para a cama.

Clarice morreu num dia de sol radiante. As amigas choravam com sinceridade. Lá estavam os filhos, o menino já crescido e alguns parentes que sabiam pouco da vida dela.

Roberval chegou, olhou de relance para o caixão, sentou e emudeceu. As amigas, sem se conformar, cochichavam: “o canalha não chora; o desgraçado não verte nem sequer uma lágrima para a mulher que sempre o amou”.

Roberval mudou, ou seja, passou a beber mais. A filha teve que interná-lo. Ele ficava lá, meio delirante, meio sóbrio.

Perto da morte, chamaram um padre. Roberval, com os olhos secos, pediu perdão: “Padre eu casei com uma santa e só agora me dou conta disso”.

O padre deu-lhe a extrema-unção e falou baixinho no seu ouvido: “Filho, os santos são assim mesmo; vêm para a terra e escolhem viver com os piores entre os piores; vivem para aqueles que mais precisam de ajuda”.

O Padre se foi e a vida de Roberval passou pela sua cabeça como se fosse um filme. O “garotão da praia” então chorou, não se sabe quanto tempo, e até houve alguns que disseram que o morto, solitário em seu caixão, parecia ainda estar chorando.